CARNAVAL
Era sábado e a cidade estava bastante festiva já vivendo o ambiente de véspera de carnaval. No centro da cidade havia um intenso comércio ambulante de produtos para o carnaval. Usava-se livremente o lança perfume também chamado de “cloroetil”. As pessoas protegiam os olhos dos jatos do lança perfume com óculos coloridos, descartáveis, fabricados artesanalmente com cartolina e papel celofane. Havia também alguns mais sofisticados de plástico colorido flexível e transparente. Os ambulantes comercializavam chapéus e quepes multicoloridos bem assim serpentinas e confetes e diversos tipos de adornos e fantasias apropriadas à festa.
Algumas marcas de bebida tradicionais distribuíam brindes variados para uso nas festas e desfiles de carnaval com propaganda de seus produtos. Esses brindes eram distribuídos gratuitamente aos clientes nas lojas do centro a cidade.
Era onze e meia e o expediente da loja onde trabalhava estava prestes a se encerrar. A loja tinha três funcionários: um vendedor, um zelador e eu que era uma espécie de coringa, um faz tudo. Como era já costume, os dois funcionários solicitaram um vale antecipando parte do salário antes do final do mês. O Sr. Breno, um dos donos e também tesoureiro da loja, mandou-me trocar cédulas de valor elevado por outras de menor valor para que pudesse efetuar o pagamento dos vales solicitados pelos funcionários. Naquela época o pagamento dos funcionários era feito em dinheiro. Não havia o costume de fazer o pagamento com cheque ou mesmo depósito em banco. Poucos, à época, dispunham de conta bancária.
A primeira tentativa minha foi na loja vizinha onde funcionava o restaurante Itália de propriedade do Sr. Mellegrini que sempre atendia às solicitações do Sr. Breno, relativas a troca de dinheiro. Mais uma vez foi muito atencioso, atendendo-me prestimosamente, fazendo a troca das cédulas de maior por outras de menor valor.
Ao lado da máquina registradora havia uma pilha de viseiras de propaganda do Ron Montila para distribuição gratuita aos clientes do restaurante. O Sr. Mellegrini notou que eu estava olhando fixamente para os brindes e logo entendeu o meu evidente desejo que, pela timidez, não fora manifestado oralmente. Gentilmente falou-me que poderia levar alguns, se quisesse. Agradeci e peguei quatro, um para mim e mais três para meus irmãos. Fiquei exultante com o presente. Apanhei com uma mão as notas trocadas e coloquei-as no bolso, de forma desatenciosa, pois estava com a outra mão ocupada com as viseiras que havia ganho. Ao colocar, sem muito cuidado, com uma só mão, as notas no bolso, devo ter deixado cair uma. Quando saía da loja fui abordado por um garoto que queria me alertar de algo. Como imaginava ser um pedinte, simplesmente o ignorei e retornei rapidamente para a loja. Depois de guardar as viseiras, dirigi-me ao Sr. Breno para entregar-lhe o dinheiro trocado. Qual não foi minha surpresa ao notar que as cédulas que trazia não totalizavam o valor que me fora entregue pelo Sr. Mellegrini. Fiquei nervoso e vasculhei os bolsos várias vezes em procura da nota que estava faltando. O Sr. Breno esperava, já impaciente, pela entrega do dinheiro. Não tive outra alternativa senão revelar-lhe que estava faltando uma cédula, e que provavelmente a havia perdido ao colocar o dinheiro recebido do Sr. Mellegrini no bolso da calça. O Sr. Breno mandou-me retornar ao Sr. Mellegrini para indagar se não teria sido ele o responsável pelo engano. Constrangido, retornei ao restaurante vizinho, mas o seu dono revelou-me que havia cuidadosamente repassado as cédulas e que eu havia recebido, sim, o valor integral solicitado para a troca.
Diante desta constatação lembrei do garoto que me abordara. Ele, certamente, de boa fé, pretendera advertir-me da queda da cédula de meu bolso. Como não lhe dera atenção, deve ter apanhado a cédula para si evadindo-se rapidamente do restaurante.
Não tive alternativa senão assumir meu erro. Perdera o dinheiro no curto trajeto do restaurante até a loja onde trabalhava. Não falei para o Sr. Breno de meu desvio de atenção por causa do brinde recebido. Isto o teria deixado mais furioso ainda.
Fui advertido grosseiramente tanto por ele como também pelo outro sócio da loja. Humilharam-me. Acusaram-me de irresponsável. Falaram que não merecia mais a confiança deles. Assim como tinha perdido uma cédula de baixo valor poderia também perder, por negligência ou desatenção, cheques ou documentos de valores bem mais elevados que comumente conduzia nos pagamentos que fazia junto aos bancos. Tive que ouvir tudo em silêncio.
Apesar de reconhecer que merecia críticas, fiquei muito chateado com a intensidade delas. Achava que a reprimenda tinha sido exagerada. Afinal chamar-me de irresponsável e dizer que perdera a confiança só pelo que ocorrera. Trabalhava na loja há mais de um ano e essa era a primeira vez que cometera um deslize, assim mesmo involuntário, por simples falta de atenção.
Tinha já programado assistir ao desfile de carros (corso) com fantasias que ocorria tradicionalmente na cidade. Perdi o entusiasmo. Aquele foi um dos carnavais mais tristes de minha vida. Afinal, tudo ocorrera por causa do carnaval. Se não fosse o brinde do ron montila certamente não teria me distraído e perdido o dinheiro.
No retorna à minha casa fiquei a me perguntar qual o motivo do exagero dos meus patrões na bronca dada. Será que eles desconfiavam que tivesse roubado o dinheiro? Afinal, era carnaval. Normalmente as pessoas gastam um pouco mais durante esta festa. Essa dúvida martelou ainda mais minha cabeça.
Tive vontade de largar o emprego. Antes, tinha padecido de outra humilhação, por motivo bem diferente, e quase deixara o emprego. Mas, tinha compromissos com minha família e comigo mesmo. Deveria permanecer no emprego por mais tempo, pois dele muito necessitava, apesar do baixo salário.
Em casa logo entreguei as viseiras com a propaganda do ron montila aos meus irmãos. Eles ficaram muito alegres com o singelo presente. Nada falei sobre o dinheiro perdido e as broncas recebidas. O problema era meu e não devia compartilha-lo com ninguém.
No sábado seguinte solicitei um vale no valor do dinheiro perdido. Ao receber o numerário o devolvi ao Sr. Breno dizendo que estava, assim, ressarcindo a empresa do prejuízo causado. Ele simplesmente aceitou o dinheiro sem tergiversar.
Fiquei em dúvida se ele realmente entendeu meu gesto como reparo ao meu erro por ter perdido o dinheiro ou se encarou o fato como se estivesse devolvendo o que houvera desonestamente subtraído.
Quando relembro este episódio concluo que não importa a motivação do velho Breno. Qualquer que tenha sido, apenas faz com que ele se apresente como uma pessoa mesquinha aos meus olhos.
Este fato alertou-me para a necessidade de estudar e livrar-me dos Brenos da vida. Se não me dedicasse aos estudos estaria fadado a permanecer durante toda a vida escravizado e submetido aos caprichos e intolerâncias de patrões como aquele. Foi um aprendizado difícil, mas eficiente. No ano seguinte deixei o trabalho e dediquei-me totalmente aos estudos. Aprendi a lição.