O duende
Tinha dias, muito raramente, que se cansava daquela vida. Um sentimento tão fugaz quanto aquela nuvem branca que vinha lá acossada por um vento que se adivinhava, daqui de baixo, de grande ferocidade uma vez que vinha embolando a grande nuvem numa reviravolta muito louca, transformando-a nas mais diferentes figuras em frações de segundos. Estava deitado de costas no gramado da praça perto da plaquinha de proibido pisar. Não estava pisando, estava só deitado. Com a cabeça apoiada na enorme mala onde carregava a trenheira. Como gostava dessa gente mineira! Vejam só! Trenheira queria dizer badulaqueira. Ou o que se guarda num quarto de despejo, ou o que se leva numa descomunal mochila hippie.
Darlene havia saído para comprar uma garrafa de vinho. Estranha aquela expressão no caso deles. Saído como assim! Como é que se sai sem estar dentro? Se moravam na rua? Sentia-se um pouco aliviado quando Darlene “saía” um pouco. Era uma excelente moça, mas como falava! Vixe! Contudo se demorava voltar já começava a sentir-se inquieto. Conhecera-a numa praia do Rio havia cerca de três anos, data é coisa que não prendia a atenção nem de um nem de outro. Tinha esticado o pano no calçadão e torcia arame despreocupado. Gostava de andar sozinho e sem amarras. Mas viu aquela moça de curvas sinuosas mal disfarçadas pela longa saia indiana. Enlouqueceu. Você me lembra Darlene de Bukowski. Foi a cantada mais ridícula que já dera, mas parece que havia funcionado, pois ela respondeu: você não chega a ser um Jorg, mas pelo menos tem gosto pra leitura, como não me lembro de ele haver descrito a moça não sei bem se isso é um elogio. Nunca mais se separaram. Era uma parceria. Dividiam os trabalhos, o pano, o canudo, os trocados que entravam. O almoço, o vinho, o papelão e cobertor ensebado nas noites frias sob a marquise. Ela nunca lhe revelou seu verdadeiro nome tampouco achou que precisava de outro que não Jorg para chamá-lo.
O vento vinha trazendo mais nuvens, agora umas pesadonas, da cor de chumbo, que iam congestionando o céu de maio. Quando os primeiros pingos frios começaram a cair ele a avistou de longe, bailando com a garrafa de vinho, os cabelos se molhando, a longa saia se voluteando ao vento, os brincos de longas penas verdes ornando o rosto lindo e feliz...
Pouco durou a chuva. Não passara de um chuvisqueiro. Agora sentados no banco de cimento contemplando o movimento da rua, os casais chegando de mãos dadas nas lanchonetes, tomando assentos nas mesas expostas pela calçada iluminada. Os carrinhos de pipoca e cachorro-quente, a viatura estacionada de frente o posto policial, o asfalto molhado refletindo a luz verde da placa luminosa da farmácia. Um bêbado que cruza a rua cercando porcos, o lotação que para no ponto, os passageiros que desembarcam numa celeuma que se sobrepunha ao ronco do motor, a jovem senhora que passa puxando pela mão o garotinho dentro da sua fantasia de...
_ Duende. Ei duende! Dá um alô aqui pra titia. Dá?
Darlene estava de pé no banco gritando e agitando os braços abertos numa dança grotesca, a garrafa numa das mãos. E gritava com mais força. A mãe apavorada arrastou com mais força o pequeno duende que observava com olhos curiosos sem entender bem o que se passava. Quando mãe e duende se perderam por entre os transeuntes, Darlene se sentou com a expressão mais triste que Jorg já vira naquele rosto. Também fez a primeira revelação sobre sua vida:
_ Meu filho deve estar com a mesma idade daquele duende. Vive com o pai na Venezuela.