RETIRANTE

Acordara antes do nascer do sol.

Havia feito no dia anterior planos para a viagem.

O filho, mirrado, aparentando ter sete anos, na verdade tinha dez. A esposa, com a face marcada pelo sofrimento, aparentava ter quarenta anos quando na verdade não passava dos trinta.

E ele marcado pelo trabalho duro, havia esquecido sua idade e seu mundo. Há muito vinha lamentando aquela vida triste. Há muito vinha tentando não pensar no quanto era doído viver naquele lugar tão sem expectativa, tão sem possibilidade, tão sem viver.

Planejara junto à esposa e o filho, sair antes do nascer do sol. Primeiro para caminharem antes que o sol escaldante os castigassem, mas o mais importante é que não queria ver a sua casa, o seu chão, o seu coração deixados para trás.

Havia herdado aquele pedaço de chão de seu pai. Tinha um carinho especial por cada grão de terra que pisava. Sonhara tanto com a chuva, com plantas crescendo, com frutas no quintal. Mas qual nada. O que realmente vivia era o deserto da alma. Ali nada se desenvolvia. Ali nada crescia. Ali nada produzia.

Via nos olhos da esposa a secura da vida que ia consumindo seu semblante, sua pele. Antes tão sedosa e agora marcada por rugas profundas. Sabia que era de puro sofrimento.

Há poucos dias até o cachorro da família havia morrido. Morrido de fome! Vira o filho guardar a coleira debaixo do colchão de palha.

Na ocasião, lágrimas rolaram de seus olhos. Sabia que era sua responsabilidade procurar um caminho melhor. Sair em busca de uma situação melhor. Não pensava que estava fazendo o melhor. Eram tantas incertezas que assolavam seus pensamentos.

Afinal como viver numa cidade grande com família para sustentar? Quais perigos enfrentaria a partir dessa decisão tão radical?

Estava cansada daquela vida. O sofrimento vinha minguando suas expectativas e possibilidades. Seu marido, cada vez mais exaurido, não estava tendo forças para suportar tanto desgaste. A vida não era fácil. Plantava, nada nascia. O gado morria seco no pasto. Criação de terreiro não suportava aquela seca. Tudo era terra e pó. Tudo era sem vida e sem sentido.

Não se opôs quando o marido disse que iriam embora para a cidade. Apenas uma lágrima rolou de seu rosto. Não seria fácil deixar sua casa, modesta, mas sua, construída a duras penas, com o suor de seu rosto, em tantas tardes de sol escaldante.

Sentiria saudade de sua família. A mãe idosa, que tanto amava. Que tanto tinha feito por ela em momentos de extrema dificuldade. Deixar os irmãos, João e Joaquim. Irmãos e amigos para todas as horas. Quantas vezes havia recorrido aos irmãos. E nestas tantas vezes fora amparada.

Mas, precisava seguir. Queria dar um futuro melhor para o filho. Percebera que com a morte do Pitoco, o cachorro do seu filho, o menino andava mais arredio. Um dia pegara o menino chorando abraçado a coleira. Talvez a distância o ajudaria a esquecer aquela perda. Quem sabe uma escola onde ele pudesse aprender as primeiras letras.

Sim, era difícil. Mas, necessário.

Não olhou para trás.

Que bom que na penumbra não podia visualizar sua pequena casa, seu aconchego terno, seu mundo quase perfeito sumindo na escuridão da noite.

Sim. Quando o pai disse que iriam embora, que o levaria para um lugar onde as crianças eram mais felizes, ele chorou. Não queria deixar sua casa. Não queria ir para outro lugar. Queria apenas ficar com seus amigos e primos brincando de “pelada”. Era tudo o que mais gostava.

No cair da tarde, quando o sol amainava, corriam para debaixo do umbuzeiro. Ali ficavam até noite alta. Não estavam enxergando nada, mas estavam jogando bola. Estavam correndo, sorrindo, divertindo. Iria ficar sem os primos. Ficaria sem os amigos. Viu que a mãe estava conformada. Viu que não havia jeito. Então, lembrou-se de seu cão que morrera de fome.

Teve uma pontada em seu coraçãozinho de criança. Havia guardado sua coleira de lembrança. Fora tão dura a sua perda. Às vezes se pegava chorando e abraçado a coleira. Percebeu que a vida era difícil naquela terra. Pitoco fazia tanta falta. Saiu atrás dos pais com sua trouxinha.

Nada de especial. Apenas um short rasgado e uma camiseta gasta pelo tempo.

Caminharam um quilometro.

De repente a criança sentiu falta de alguma coisa. Pegou sua trouxinha e começou a revirar o que havia dentro dela.

Sabia que havia colocado junto ao seu short. Tinha escondido para a mãe não ver, mas não estava lá. Sentou-se na beirada da estrada e começou a chorar. A mãe logo se zangou. Queria saber o motivo do choro.

O pai, no estresse do momento, perguntou o que acontecera. Não queria falar. Lágrimas molhavam aquele rostinho sofrido. A mãe se compadeceu. Acarinhou o filho. Queria saber o motivo.

O pai vendo aquela cena tão triste, sentou-se ao lado deles. O filho relatou que não estava encontrando o que mais queria levar consigo.

O pai insistiu, queria saber. O filho falou então da coleira. Falou do Pitoco. Falou de sua saudade. Falou de sua dor. E se debulhou em lágrimas.

A mãe tentou consolá-lo, mas nada.

O pai tomou a decisão: voltaria para buscar a coleira. Um objeto tão sem importância para os adultos tornara-se uma preciosidade para a criança.

No caminho de volta o pai não acreditava no que estava fazendo. Voltar para buscar uma coleira de cão. Era realmente inacreditável.

Ao se reaproximar da casa percebeu a preciosidade daquele objeto. Assim, como para ele, era difícil deixar aquele lugar, para seu filho era difícil deixar para trás uma lembrança tão forte: a coleira de seu cãozinho Pitoco. Aquilo era algo que poderia levar de lembrança de uma amizade verdadeira.

Entrou novamente na casa. Naquele momento, no clarão do dia, sentiu uma pontada no coração e como seu filho sentou-se no chão e chorou.

Era difícil partir sem levar saudade.

NEUZA DRUMOND
Enviado por NEUZA DRUMOND em 23/02/2017
Reeditado em 15/03/2017
Código do texto: T5921318
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