OS SONS DE CLARISSE
Mais um dia conversando com Clarisse, ela me questionou algo que mesmo com anos trabalhando como psicólogo, nunca havia pensado. Sorrindo me perguntou:
— A vida pode ser reproduzida por nota musical? Não entendi direito e falei:
— Não entendi Clarisse, porque a pergunta?
Foi só um estopim para o início de um monólogo sobre o assunto que mais a fazia feliz. Eu sabia disso, mesmo assim perguntei.
— Eu levo a vida assim, canto diariamente músicas que não sei a letra. Algumas partes eu até lembro, porém, a maioria eu enrolo com la la la. É de família, herança da minha avó materna. Dona Ildes, era rainha de cantar assim, nunca deixou de terminar toda a música, fazia questão de agradecer ao público mesmo que estivesse sozinha. Soltava sempre um “Obrigado meu povo”. Era canção atrás de canção, cozinhava e cantava. Aquela voz me encantava, linda, sem comparação e sem tradução, pois, cantava em qualquer língua. Todas com o mesmo sotaque, em especial o inglês que era inventado de imediato, sem noção. Mas tudo isso não importava, bastava acertar a rima.
Nessa hora percebi certa melancolia e saudade na voz e na expressão de Clarisse. Não disse nada, esperei o complemento da história. E ela veio:
— Minha avó, cantarolava sem tom. Incrível era quando tentava acompanhar seu ídolo maior que era Roberto Carlos. Colocava a orelha no radinho de pilhas, tapava a outra para melhor ouvi-lo e assoviava dizendo que “com ele não disputava”. “O Robertinho era demais”. Muitas vezes brindamos a beira da mesa essa adoração que ela tinha pelos seus cantores favoritos. Brinde feito com água e em copo de extrato de tomate. Mas isso tudo se foi, minha avó se foi e com ela a voz, porque a minha tu conheces bem né?
Fiquei envergonhado de dizer parecer o som de uma taquara rachada e desviei meus olhos até o bule de café, ela percebeu e disse:
— Deixa que eu sirvo.
Bebi meia xícara num gole só, depois peguei duas bolachas e comi. Ela parecia estar esperando para dar o golpe fatal, por algum motivo tive medo do que ela diria, mas acalmou-se e finalizou:
— Vou tentar fazer como minha avó. A partir de agora levarei minha vida cantando, ela nunca se importou com a correção dos outros, tampouco com os idiomas desconhecidos. Levou sua história assim. Um dia ela me disse: "Clarisse minha netinha, faça igual a mim e será feliz. Cante sem saber, vibre sem querer, esqueça por querer e principalmente viva por viver".
Eu, terminando minha xícara de café e levando mais uma bolacha até minha boca, quase engasguei quando Clarisse olhou no fundo dos meus olhos e disse.
— Doutor, já passou mais de dez anos que minha vovozinha se foi, e mais de três anos que faço terapia com o senhor, será posso viver melhor agora?
Não respondi de imediato, estava com a boca cheia, terminei com a última bolacha do pacote e quando fui dar a resposta positiva que Clarisse esperava, ouvimos um pássaro e ela sorridente finalizou:
— Espera um pouco agora, minha avó veio assoviar para mim.