O garçom liberou um sorriso comercial e acumulou em suas reservas mais vinte por cento além da comissão.
— Vais de táxi?
— Não! Meu motorista já chegou. Queres uma carona?
— Obrigada! Vou de metrô.
— Não é por acaso que te chamam de ‘a dama do metrô.'
Riram.
— Gosto de reparar o rosto das pessoas na estação.
—  E queres trocar a cidade por uma ilha desabitada?...
— Vivo numa ilha dentro de um universo de falantes que não me compreendem.
— O homem é uma ilha, se assim o quiser.  Que tens a fazer numa ilha deserta? Dirias  a teu filho que há um mundo  perigoso,  depois do paredão das águas? Que depois da muralha existem pessoas que matam seu semelhante  para roubar um  tênis?  Não estarias instituindo a teoria do medo?
— Gosto de mistérios, e toda ilha tem seus mistérios.
— Talvez tenhas medo da solidão.  Neste caso, o veneno é antídoto do próprio veneno.
Fez uma pausa. Tomou um gole de chá. Olhou para Ravenala que se mantinha em silêncio, e prosseguiu:
 — Se teu filho perguntar: ‘Existe outro mundo além deste universo de águas? Não lhe falarias de moda, avanços tecnológicos e outras coisas boas que há no mundo?  Não queiras tornar-se pregoeira do niilismo. Alguma coisa precisa ser feita para retomar a vida de paraíso que tiveram nossos primeiros pais. Não cruzemos os braços! A graça de Deus é orvalho noturno que cai como bênção sobre a terra, mas é preciso por a mão no arado. Preparar a terra se desejar  boa colheita. preciso por a mão no arado. Preparar a terra se desejar  boa colheita.
Arado numa ilha é ferramenta de suma importância — pensou — e organizou mentalmente sua tralha: arado, facão, machado... semente para o plantio... Enfim, levaria a cidade para a selva. E com certeza, os mesmos problemas que afligem sua alma.
— A ilha tem seus mistérios, se gostas de mistérios... e também de problemas, vá para uma ilha deserta.
— O quê? Desculpe! Eu estava reorganizando meus planos.
— Viajando?
—  Pensando: Chá é bom para acompanhar uma boa conversa.
 — Reconfortante. Melhora o humor, como se despachássemos todos os problemas junto com a fumaça da imersão.
Morgana acomodou as costas no espaldar da cadeira e continuou seu discurso.
— Problemas se tornam fardos insuportáveis, quando concentramos nossas forças a favor deles. Cada dia é um  novo desafio. Às vezes perdemos a batalha porque combatemos o inimigo errado.  
— É verdade. Antes de fazermos amizade, eu te julgava uma ‘patricinha.’ Faz tanto tempo...Chegavas na escola de Cadilac vermelho...
— O dinheiro de meu pai nunca me subiu à cabeça. Não somos dono de nada. Tudo passa...
— Sou escrava do trabalho e pela mesma via, do dinheiro. Deveria ter feito do dinheiro meu escravo, mas me deixei escravizar por ele. Durmo pensando em dinheiro, acordo pensando em dinheiro. Não tenho tempo de ouvir o  pássaro que canta;  a cantilena da chuva no telhado, nem o zumbir da abelha  colhendo néctar no girassol. Não tenho tempo para ver nem sentir os mimos de Deus.
— Sendo assim, numa ilha terás tempo. Muito tempo...
Havia  muita verdade naquilo que a amiga dissera, quando se referiu a niilismo. Às vezes ela mesma, Ravenala, se pegava pensando que o mundo não tinha mais jeito. ‘Tudo está perdido. Tudo destruído: a natureza, a família a paz... Mas a destruição acontece, quando permitimos a desconstrução de nosso  mundo interior. ’ E concluiu: ‘Sou parte do mundo, se estou mal, tudo em volta adoece. Perde o brilho e a cor descora como folha no outono.
— O mundo sou eu. Às vezes, carrego peso que não é meu. É da bagagem que carrego, mas a bagagem não sou eu. São entulhos acumulados na mochila, que precisam ser jogados no lixo. Sinto-me um caranguejo ermitão carregando sobre as costas pesada concha.
— Nem tanto assim, Ravinha. Pode ser que estejamos  na lama, mas não somos a lama. A luta pela sobrevivência requer a conquista do próprio  espaço, o que é deplorável é querer açambarcar tudo para si. Ter o mundo todo a seus pés. A vida passa tão depressa... Chegará o momento em que o desapego será a forma mais segura de viver melhor. De repente, uma decepção, leva-nos a perder a necessidade das coisas materiais e nos atemos ao espiritual… As certezas tornam-se incertas e só a morte é garantia de vida eterna. Isso ocorre quando abrimos mão daquilo  que é temporal.
— Como a ganância?
— Sim! Como a ganância e outras más inclinações que sufocam a alma.
— Achas justo trabalhar com afinco e o que o governo não subtrai com pesados  impostos, vem o ladrão e leva?
— Pagamos caro por nossas más escolhas...
— Não escolhi mazelas. Não fui eu quem pôs crianças na rua, traficante e mendicância.
— Escolhemos mal nossos representantes. A má administração do bem público causa os danos, pelos quais somos responsabilizados.
— Os amigos do rei se deleitam com gordas contas no estrangeiro, enquanto o povo passa privações.
— Isso é para ser resolvida entre o Patrão e o administrador infiel. Há um bem espiritual muito mais valioso a ser conquistado. Este ninguém rouba, furta ou trapaceia.
— Obrigado, Morga.
— Nada me deves por isso. Também fui beneficiada com a terapia deste abraço de almas. Não vais tomar teu chá?
 O garçom percebendo que as jovens não se retiraram da mesa aproximou-se oferecendo seus préstimos.
— Mais alguma coisa, senhoritas!
— Obrigado! Já vamos sair.
Falaram pouco de seus amores, das dores que afligem um coração apaixonado. O nome de Fernão foi apenas mencionado. Trataria uma coisa de cada vez. É certo que  Morgana sabia pouco de Fernão. Também Ravenala não sabia muito. Por enquanto, melhor acionar as ‘cordinhas’ do coração e deixar o barco navegar à deriva. E quando chegar a calmaria, o amor estará pronto para desembarcar em porto seguro. Ela deixara parte de seu fardo na confeitaria.
O trem chiou nos trilhos.
A lembrança do acidente na plataforma da estação trazia-lhe à mente a imagem do cavalheiro que lhe oferecera ajuda. Fernão era o nome dele.
 
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Trecho de Estrada sem fim...

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Trecho de Estrada sem fim...