CAMALEOA*
De óculos escuros e cabelos presos, uma tiracolo de rendas, roupas leves e coloridas apropriadas ao verão, andou por entre as sombras das copadas árvores da praça, preguiçosamente percorreu aquelas alamedas conservadas, em seus passos despreocupados, ao ritmo de suas recordações... Tantas lembranças advinham ao visitar aquele lugar, há anos deixado no passado. Os ecos das brincadeiras assomavam vida ao perceber-se menina correndo e escondendo-se nas brincadeiras com seus amiguinhos de infância. Ali fez os primeiros estudos, viu-se adolescente necessitada de voos maiores, mas, apesar da independência de suas origens, sentia-se presa as suas raízes interioranas. O viver na imensa cidade, sendo mais uma, no anonimato das multidões, tinha suas vantagens, o da privacidade um deles. Mas o aconchego daquele lugar era único, onde aflorou a sua personalidade. A vida vai nos construindo, paulatinamente, a cada novo desafio, nos apresentando a nós mesmos, as vezes surpresos com as nossas próprias atitudes em cada situação, com ela não foi diferente. Ali voltava depois de longa ausência. Vinha para o sepultamento do velho pai, a mãe já havia partido antes. Ele a visitou algumas vezes e não conseguiu convencê-lo a acompanhá-la, a metrópole o atordoava, preferia a quietude daquela pequena cidade, onde todos pareciam se conhecer, como extensão da própria família. De herança a velha casa, bem localizada mas de monta pequena, necessitada de reparos. Era a única filha, a ela caberia a decisão do que fazer, possivelmente a venderia, rompendo, definitivamente, seus laços materiais com seu passado. Restariam as recordações, que vinham naquele momento como o rebobinar de um filme guardado nos refolhos da mente. Percebera a mulher desabrochando naquela vivaz menina de outrora, no avantajar de suas pernas, mal ocultas nas vestes, com a proeminência dos seios espontâneos, insinuantes sob o tecido de suas roupas. Seus lábios carnudos e femininos manifestavam-se na face morena, seus cabelos em desalinho revoltos na testa e dorso, pareciam acentuar uma sensualidade precoce; os olhos jabuticabas, matreiros e fascinantes e cada vez mais ousados e curiosos, as formas exorbitando no corpo modulado de fêmea, a criança despertando para a mulher que surgia. O sorriso denotando mudanças, as mãos finas e impacientes detendo o pudor diante às descobertas adultas, fruta de meia-estação, larva rompendo o casulo, despontando a bela falena, viçosa, inebriante, instintos em apuros, frenesis e torpores. Malícias às escondidas, a primeira aventura, o beijo, o abraço mais estreito, o sentir e o sentir-se do outro, nos cheiros, na pele, a confidência e a descoberta de si mesma em novos anseios. A imagem vaidosa no espelho, o olhar diferenciado ao outro, o flerte, o inocente bilhete, os projetos de um amanhã desabrochados e imediatos. Na lábia das maravilhas, desejando e desejada, receios e dúvidas, a flor tentada pelos instintos, atos e gozos consumados... Aonde andaria aquele meninote, sua primeira experiência com as coisas adultas? Ambos curiosos a olharem-se cheios de surpresas, os corpos nus, inéditas aparições a ambos; a ela a primeira vez a avistar o macho em pelo, e também ele a descobria sem bem saber como proceder...
Livre mariposa, rosa aberta, amadureciam as malícias, despidas as faces ruborizadas do que restava da pequena menina de laçarotes e bonecas.
Com o tempo, a ave manhosa de asas crescidas, dos resquícios infantis, a meiguice; da mulher brotou o sensual. Das maças das faces a chama flamejante de volúpias, em ardente fogo avassalador. Senhora de si e de suas qualidades, reinando absoluta, subjugando tantos súditos submetidos aos seus encantos. Do forte fê-lo frágil, fascinado nas carícias, e do macho quedou-se criança, necessitada de colo. De tantos fazia-se cobiçada, poucos a satisfez, era tantas em inúmeras máscaras, na conveniência de cada situação, metamorfose camaleônica, surpreendendo-se consigo mesma muitas vezes. Fantasia de grandes paixões, fruta enigma, num jogo de sensualidades em brincadeiras perigosas, onde os papéis se invertem, e as paixões trazem luzes e trevas, fascínios e desilusões. Foi a joia rara, desejada, exigente a menina e seus encantos, enamorada por ninguém...
Na voragem do tempo, onde tudo se apresenta como capítulos sequenciais de uma história de vida, ela estava a refletir-se na despedida de uma fase importante de sua história. Por certo pouco restou da infância doce, os dias requerendo novos papéis, nem sempre fáceis de serem desempenhados. Tornara-se uma executiva de uma empresa, onde a astúcia para se manter na liderança exigia muito de si em jogos nem sempre claros e leais, eram as regras do jogo. Desligou-se de seu solilóquio com o alarme de seu celular, os compromissos, sempre eles...
Então a meditativa personagem assumia os ares da atual personalidade, sem enlevos poéticos e saudosos, mas fatal e certeira, determinada e assumida. Em rápidas considerações dera as ordens, sem possibilidades de serem questionadas. Assumira aquela posição motivada pelo seu carisma, reconhecia isso, e, para mantê-la, exigia de si constante vigilância e diligência. Dentre tantos candidatos à cobiçada vaga lançou-se de todas suas armas e ardis, inclusive de seu belo corpo como moeda de troca. Não vacilara em colocar na balança seus atributos físicos, não negaceou nem por um momento, pontos de que não dispunham os concorrentes, todos masculinos. Tinha currículo acadêmico para isso, como todos os demais.
No jogo da sedução, com atributos inexistentes nos concorrentes, assumia a vaga e a condição de amante eventual do presidente da empresa, papel, aliás, que desempenhava com prazer. Efetivada como uma das executivas do grupo empresarial demonstrava competência profissional, fazendo jus ao cargo. Comandava setor importante com mão de ferro, atraindo admirações em uns e despeitos em outros. Sabia-se invejada e que apostavam em seus possíveis deslizes para ocuparem seu lugar, o que a mantinha em alerta permanente. Não perderia aquela oportunidade por nada. A vantagem inicial que contou na efetivação na função inexistia atualmente, pois o ex-presidente, vítima de um acidente vascular cerebral, encontrava-se enfermo e aposentado de sua liderança, consequentemente distante de seus préstimos extra profissionais. Importante era ter galgado o posto, o resto era com ela, dependia de seu tirocínio e de sua intuição para os negócios, as aventuras extras conjugais do líder foi acidente de percurso, a esposa oficial que cuidasse do enfermo.
A vida a teria tornado fria e objetiva, ou eram partes de si mesma que assomava em suas atitudes dependendo das situações? Talvez nos desconheçamos inteiramente e nos apresentemos a nós mesmos dependendo os desafios apresentados. A visão que temos de nós pode depender do contexto vivido, ou temos apenas idealizações imaginadas, dubiedades construídas motivadas pelas circunstâncias? Talvez sejamos mutáveis pelo meio, assumidas conveniências, como camaleões e seus disfarces na natureza. Possivelmente coabitemos em nós o desconhecido, habitando o mesmo Ser, coexistindo sem questionarmos. Como sombra, pronto a assumir o controle, além do que supomos ser, em cada necessidade que nos desconhecemos capazes, andando sobre os nossos passos, identidade compartilhada, como o coadjuvante na coxia do palco da vida, pronto às emergências em cena, numa identidade compartilhada. Talvez passemos a vida na figura idealizada de nós mesmos, possíveis produtos de nossa herança cultural e tradição, ocultos em nossa figura social idealizada, incólumes aos demais, sem nos apresentarmos a nós, ignorando quem sejamos, na ilusão de nós mesmos... Ah, como diferimos do que somos, no depender das condições !
Por detrás daquela bela e enigmática mulher muito se ocultava da esquecida menina a correr e a brincar naquela praça, personagem guardada qual boneca da infância no velho guarda-roupas...
***Publicado em livro na antologia os Sete Pecados Capitais, editora CBJE-Rio de Janeiro-RJ, fevereiro 2017.