RESILIÊNCIA
Saiu de casa pela porta da frente, com a cabeça erguida e uma prepotente certeza no peito de ter feito de tudo para salvar o casamento. Mas todo o esforço não bastou, e o que um dia fora um sonho lindo, desmoronou-se enfim, após anos se deteriorando vagarosamente a cada diferença mal suportada, a cada ferida aberta, a cada mágoa sufocada e todos aqueles passos que, sabe-se lá em que altura do jogo tomaram direções paralelas e até mesmo opostas.
Debaixo do braço levava uma caixa de isopor grande o suficiente para duas calças, três bermudas, quatro camisas, algumas cuecas e alguns pares de meias. Isso era tudo o que lhe interessou levar de material. Não reclamou sua sorte, afinal, recomeçaria a vida em qualquer lugar que fosse, pois tinha inteligência e coragem suficientes para os obstáculos que surgissem. E a dor da separação não duraria mais que algumas noites mal dormidas. Enfim, não tinha o que temer. Era melhor assim. Cada um com seu caminho e...
_Papai! Papai!
Aquela voz aguda da pequena lhe feriou os tímpanos interrompendo seus devaneios. Olhou para trás como em câmera lenta e abaixou-se para comportar nos braços aquele pequeno corpinho que vinha correndo em sua direção.
_Fica tranqüilo papai. Logo a raiva da mamãe passa. Quando o senhor voltar, me trás um chocolate?
Silêncio. Silêncio e lágrimas misturadas com a neblina no rosto. As palavras ingênuas da filha de apenas seis anos foi um duro golpe para o qual não estava preparado. Quando resolvera sair de casa naquele momento e buscar abrigo na casa dos pais até que tudo se ajeitasse, pateticamente esquecera aquele pequeno detalhe de cabelos cacheados, olhos amendoados e o sorriso mais lindo do mundo.
_Papai?... Vai me trazer o chocolate na volta?
Silêncio. E mais lágrimas. Lágrimas que nasciam da certeza cega de que nada estava definido.
_Sim querida. Eu trago sim.
Depois da complicada missão de se desprender daquele abraço, seguiu a passos lentos. Na cabeça, montava e remontava teses de como ser um pai presente embora distante. Voltaria amanhã com o chocolate e também com um abraço. Depois de amanhã voltaria com livros, conselhos, elogios e tudo mais que é dever de um pai. Apareceria religiosamente para ajudar nas tarefas da escola e o que mais precisasse. Afinal, estava se separando da esposa. Estava deixando de ser marido, não deixaria de ser pai. “Afinal, a quem estou tentando enganar?” Pensou...
A noite não o deixou dormir. Sentando num banco de uma praça qualquer, as imagens que lhe vinham eram de passado e futuro. Via o rosto da filha a lhe sorrir, abrindo os braços e correndo em sua direção. Via a pequena dormindo com seu rostinho de anjo... Mas via também sua criança crescida, olhando indiferente, como se não o conhecesse, agarrada à mãe, passando do outro lado da rua e virando o rosto para não o encarar... Ouvia a voz dela lhe dizendo que quando mais precisou ele esteve ausente. Ouvia a voz dela chamando seu nome. O nome de batismo, de maneira formal e respeitosa como se dirige a um idoso, não o chamava de pai.
A decisão enfim estava tomada.
Logo de manhã entrou pela porta da frente com o chocolate da filha em mãos. Olhando nos olhos da esposa tudo se explicou sem palavras. Pensavam da mesma maneira. Sacrificariam quantas vezes fossem necessário a vida amorosa, seus desejos particulares, a paciência e tudo mais quanto fosse preciso para estarem ao lado daquele pedaço de amor de cabelos cacheados. Viveriam na mesma casa como amigos quase distantes. Saciariam a sede carnal um com o outro quando o acaso permitisse. E sabiam que irremediavelmente apareceriam amantes dos dois lados, e os dois se fingiriam de cegos aos escapes do outro. Aceitariam tudo isso pelo bem da filha. O silêncio dos dois naquele olhar dizia tudo. Estava feito o pacto, o acordo. Meio sorriso se abriu de um dos lados, logo, o outro também...
_Papai! Papai! Meu chocolate! Lembra mamãe, eu disse que ele voltava!!