Useiro e vezeiro

 
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Era uma verdadeira tortura. Sentado, suando,  preparava-me para enfrentar a indômita e temível máquina de escrever. Daquelas bem antigas. Isso eu digo agora, porque então, até que ela era moderna. A seguir, pegava duas folhas brancas, colocava um papel  carbono no meio  e as passava pelo rolo. Acertava as margens e começava a torcer para não errar. A meu lado, em pé, preparando-se para ditar, o respeitável advogado Dr. Mesquita.
Culpa minha. Quando me candidatei para o cargo, disse que sabia datilografar. Antigamente isso era até profissão. Vai ver que até tinha sindicato próprio! Ocultei o detalhe que exercia a nobre profissão com apenas dois dedos. Nessa categoria, até que eu era rápido. A verdade é que eu tinha sido aceito por outras qualidades. Estava fazendo colegial, tinha estudado em colégio de padres e certamente conhecia um pouco de Latim. O Dr. Mesquita, obviamente, deduziu que, pelo menos, eu não ia estranhar seus “latinismos” nas petições judiciais.
Voltando ao assunto da tortura, a parte realmente complicada era errar ao bater uma tecla. Uma vez cometido um erro, você tinha de voltar no texto, colocar um papelzinho especial com tinta branca na frente da letra criminosa e bater de novo, a letra errada. Essa  “desaparecia”, você voltava o “carro” da máquina e batia a letra correta. E, então, você rezava para não acontecer de novo. Era um suplício.
O local de trabalho era um colégio. Era também imobiliária e, certamente, um escritório de advocacia. Enquanto o advogado e dono da escola não estava lá, eu fazia um pouco de tudo. Aquela hora, porém, era sagrada. Ele cuidava de causas criminais, divórcios e outras disputas em geral. O que mais havia, porém, eram os casos de despejo. Depois de descrever o autor da ação (brasileiro, casado, RG número tal, residente, etc, etc...), vinha a descrição do coitado do réu. Aliás, eu achava um desaforo chamarem aquelas pessoas de “autores”. Onde se viu? Para mim “autores” eram Machado de Assis, José de Alencar e outros. O réu, inescrupulosamente, era adjetivado de “useiro e vezeiro” em atrasos. Demorei um tempão para entender que o “useiro” era porque o coitado do inquilino “usava” muito o ato de atrasar, não se sabe por quê. Provavelmente porque não tinha dinheiro. O “vezeiro” era porque ele fazia isso muitas “vezes”.
O que eu lamento daquela época é que o Dr. Mesquita nunca me colocou para dar aulas no seu colégio. Claro, eu não podia, ainda nem estava na faculdade, mas ele poderia ter achado alguma função que não fosse aquela de ficar “errando” na terrível Remington.
Nem dá para acreditar que hoje existem computadores e esse maravilhoso “Word” para o qual não há limite de erros. Ele corrige todos, sem remorso, sem exceção, impunemente. É fantástico, não é?  Outros erros da vida, entretanto, devo advertir que não são tão fáceis assim de serem apagados. Esse software ainda não foi inventado.

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Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 06/02/2017
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