961-VISITA À FAMÍLIA -

Tempos atrás, recebi uma carta de uma senhora que gosta de ler meus contos, na qual narrava um fato presenciado por ela quando era adolescente e que muito a impressionara.

“Me impressionou tanto, (escreveu ela) que me lembro nos mínimos detalhes do acontecido.”

E passou a narrar o que vivera há mais de cinquenta anos. Respondi a carta como respondo a todas as mensagens que recebo, sejam pelo correio ou pela Internet e a coloquei na pasta com o nome da gentil senhora.

Entretanto, a narrativa era tão viva que me entrou pela cabeça e fiquei pensando: escrevo um conto sobre o fato, faço uma adaptação ou simplesmente ignoro?

As cenas não me saiam da cabeça. Resolvi então, transcrever o relato, tão real me parece ser, alterando apenas os nomes e dando uma sequência lógica.

Eis a história que passo aos leitores, com a devida autorização da senhora que a registrou em carta.

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Vou contar-lhe o que vivenciei numa cidadezinha do interior de Goiás, quando era solteira.

Nasci e fui criada no Rio de Janeiro e apenas uma vez, quando era garota de dez anos, fui levada por meus a visitar meus avós, tios e primos, que moravam no interior de Goiás. Uma segunda vez, voltei lá, sozinha, aos dezesseis anos, uma viagem que foi para mim uma aventura, pois naqueles tempos (década de 1940) mulheres JAMAIS viajavam desacompanhadas.

iquei hospedada na casa de minha avó materna tratada por todos de Vó Ceição, e pouca gene sabia que seu nome era Maria da Conceição. Já era então viúva.

Ela não aprendeu a ler. Ia à missa diariamente, no tempo em que os padres rezavam de costas para o povo, usavam o latim, e ninguém entendia nada das orações. Vovó levava um missal com as fotos tamanho 3 x 4 centímetros de todos os netos! Teve doze filhos e vinte e um netos, numa época em que havia muita mortalidade entre bebês e crianças, de forma que dois filhos morreram com quatro e cinco anos, e quatro netos também faleceram em tenra idade. Mamãe teve dois filhos e duas filhas e eu era a mais velha de toda a irmandade. Felizmente, na família de mamãe, “escaparam todos”, como se dizia.

Bem, voltemos à viagem. Visitei os tios e primos que ainda moravam na cidade ou nos sítios, pois meus avós Duardo (Eduardo) e Vó Ceição foram sitiantes e alguns filhos se tornaram também agricultores.

O que mais me impressionou foi o almoço na casa de Tia Felícia e Tio Cosme. A casa era limpíssima. Chão varrido com capricho, móveis sem poeira, com toalhinhas de crochê que a tia fazia. O terreiro de terra batida que circundava toda a casa também estava limpo, sem uma folha, parecia que tinha sido varrido momentos antes de minha chegada.

Ela me recebeu com todo seu amor, não parou de rir ou sorrir todo o tempo, até me despedir, à tardinha. Perguntava por mamãe, papai, que fazia anos não via, o que eu fazia, como estava nos estudos. Procurou saber de tudo, antes de se revelar a mim como dona de casa dedicada ao marido e ao filho. Me lembro bem de seu sorriso por causa da dentadura de dentes exageradamente brancos que sobressaiam na sua face morena, queimada,

Relatou com sinceridade e não escondeu nada sobre marido e filho. Tio Cosme gostava de beber, bebia de mais (na verdade, era alcoólatra inveterado, mas isso não se dizia naquela época) e vivia às turras com Joaquim, meu primo. Filho adulto (teria uns vinte e cinco anos, creio), sofria de uma doença mental, um retardamento e vivia confinado no sítio. Puxei conversa com ele. Nada disse de coerente, só queria saber de ouvir o rádio.

— Ele ajuda o Cosme, quando está bem. M as quando está de lua (ou seja, atacado pela doença) só quer ouvir rádio. Hoje mesmo está numa fase assim. — Tia Felícia foi me explicando com naturalidade, mostrando grande compaixão pelo filho.

Era uma quarta-feira, dia de sol e quando cheguei ao sitio, o tio estava colhendo milho. Antes do almoço (que titia havia preparado com muito capricho, matado um frango e assado uns pães feitos na hora) chegou o tio. A mesa posta para quatro pessoas, com simplicidade mas capricho, nos aguardava.

Suado, rosto vermelho, cansado. Entrou pela porta da cozinha e não me reconheceu de início, mas logo se deu conta da sobrinha. Notei que falava enrolado e tia Felícia me sussurrou:

— Ele já tomou muitas pingas enquanto trabalhava. Não passa sem beber. — Olhou para ele, com um olhar de ternura e acho que até de encantamento.

Ao passar para a, viu o Joaquim sentado num banco rústico, ouvido colado ao rádio.

— Vem cá! — Chamou o Joaquim, que não ouviu ou fez que não entendeu.

— Quinzin, vem cá! — gritou para o filho. – Quantas vezes já te falei prá num ficar ouvindo rádio o dia inteiro?

Sem esperar resposta do meu primo, agarrou-o pelo pulso e o arrastou para fora da sala, para o terreiro defronte a casa.

Quando Tia Felícia ouviu, correu para o terreiro, e eu a fui atrás dela. O que vi me assustou demais.

Os dos homens rolavam pelo chão, numa briga desajeitada. Parece que o filho não entendia o que estava acontecendo e tentava desviar dos golpes que o pai tentava lhe aplicar na cabeça, nas orelhas, nos ombros. O pai, cansado da lida ou já tonto pela cachaça, não acertava, ou quando acertava, eram tapas frouxos ou socos que não machucavam.

Tia Felícia tentou apartar os dois, puxando o marido pela camisa, Também tentei, mas não consegui chegar perto dos dois, que se abraçavam e reviravam, emporcalhando as roupas de terra vermelha. Enfim, cansado, o pai rolou para um lado, onde ficou deitado, arfando. Quinzin levantou-se a custo e correu para dentro de casa.

Minha tia foi depressa até a cozinha e voltou com uma jarra com água e um copo, que deu ao marido. Ele sentou-se com dificuldade, tomou a água e em seguida, ajudado pela espopsa, se colocou de pé.

— Calma, Cosme, calma. Não fica assim brabo com o Quinzin, não. — enquanto falava, passava as mão pelas roupas do marido, tentando tirar a poeira, abotoando a camisa, passando a mão pelos cabelos. Uma ternura e uma compreensão que me emocionou às lágrimas.

Ela o levou, de braço dado, para a cozinha, onde estava posta a mesa para o almoço. Eu já tinha perdido o apetite, estava assustada e minha vontade era ir embora naquele momento.

Tia Felícia, entretanto, tinha uma paz tão grande, um poder de acalmar o marido (e também a mim), que logo estávamos sentados os três pra a refeição.

— Deixa o Quinzin descansar, vou guardar a comida dele em cima do fogão.Ele come depois. — Ela disse, já esboçando um sorriso. – Ele não se incomoda de comer comida requentada.

A comida estava boa. Não posso dizer que estava”uma delícia”, pois o apetite se fora e nós comíamos como que forçadamente. Os dentes de Tia Felícia brilhavam mais que seus olhos, enquanto comíamos e ela tentava animar a refeição. Comi bem. Mas até hoje posso sentir o gosto azedo da limonada que ela preparara e se esquecera de adoçar.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 12 de setembro de 2016.

Conto # 961 da série 1.OOO HISTÓRIAS

Inspirado em narritva em carta de Iracema de Mello. – Rio

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 02/02/2017
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