958-MANHÃS DE ABRIL - 2a. PARTE

2ª. Parte

Nas caminhadas matutinas não levava lanche (pois, se ia para a chácara dos tios, não havia porque levar o que comer) nem água. Comia frutas que eventualmente topasse pelo caminho: mangas nos pastos, limas entre cafezais, cajuzinho do campo, coquinhos catarro.

De vez em quando desembocava, sem querer, num sitio habitado e encontrava gente: moradores de roça, pessoas simples, que ao me verem, respondendo ao meu cumprimento, convidavam:

— Vamo entrá prum cafezinho.

E ao notarem que eu andava “de mãos vazias”, como diziam, o sol já passando para a metade da tarde, perguntavam:

— O mocinho tá sozinho? Já cumeu? — E sem esperar resposta, prosseguiam: — Espera um pouco, vou trazer uns pedaço de bolo pra mode oce comê.

Eu aceitava e agradecia. Era café muito forte e geralmente bolo de fubá. Coisa de “sustança”!

Quando ia me despedindo, ofereciam:

— Leva uns pedacinho de bolo prá cumê no caminho.

— Obrigado, eu respondia. Já estou voltando e logo chego em casa.

E continuava. Quando andava pela serra de Ipoméia, podia ouvir os sinos da Igreja Matriz, ao longe, badalando ao meio dia. Então, pensava, estava na hora de voltar.

Chegava em casa pelas três ou quatro horas da tarde, o rosto vermelho, afogueado, os cabelos loiros ficavam quase brancos queimados pelo sol, cansado e satisfeito.

Cruz da Noca

Outro local misterioso era numa pequena elevação, não chegava a ser um morro, onde um cruzeiro marcava o acontecimento de uma tragédia. Era a Cruz da Noca. Ali havia ocorrido uma tragédia: uma menina de treze anos fora encontrada morta, com sinais de estrangulamento. Entretanto, mulheres piedosas iam lá cumprir promessas e diziam que a alma da menina havia curado algumas pessoas da cidade (principalmente garotas com a idade que teria Noca). Lugar cercado de certo mistério, ao qual só iam mesmo as mulheres piedosas; eu não tinha medo e até gostava de examinar os objetos deixados ao pé da cruz: terços, pedaços de pano, um sapatinho, velas, tudo em agradecimento por milagres. Nos cruzeiros restos quebrados de esculturas de santos eram colocados como de costume. Na Cruz da Noca, havia um monte de cacos de santos.

Ali perto da Cruz da Noca estendia-se um grande campo onde os coqueiros de indaiá cresciam sem concorrência. Era bonito de se ver as folhas brilhantes agitadas pelos ventos suaves das manhãs de abril.

Nesses campos papai, uma vez por ano, colhia folhas para cobrir os canteiros de hortaliças da nossa horta. Para isso, contratava uma carroça, cujo carroceiro ajudava no corte das folhas, enquanto que eu e meu irmão Artur, garotos de nove e dez anos, arrastávamos as folhas para a carroça. O cavalo era retirado dos varais e livrado dos arreios e amarrado com longa corda a uma árvore, pastava tranquilamente durante toda a manhã, o tempo necessário para encher a carroça com centenas de palmas. Por vezes, topávamos com uma penca de coquinhos de indaiá, cheirosos, e a levávamos para mamãe fazer delicioso licor de indaiá.

O Tirabufo

Havia o Tirabufo. Lugar maldito. O rio Liso que era um rio de campo, correndo tranquilo, fazendo meandros nas baixadas, repentinamente estreitava-se, caia numa cachoeira de menos de um metro de altura e formava um poço. O movimento das águas, girando em torno de um centro provocava um vórtice fatal. Nunca se soube o que havia alí. Seria um grande buraco que sugava o que era jogado na superfície? O fato que algumas mortes ocorridas exatamente no vórtice tornavam o lugar maldito. Proibido. Havia uma prainha de areias mornas e claras ao redor do poço. Algumas vezes cheguei até o Tirabufo, nas caminhadas erráticas pelos campos de minha terra, mas jamais atrevi sequer a por os pés naquelas águas malditas.

A Lagoa Preta

A serra da Ipoméia estava a algumas léguas da cidade, e era onde ficavam as melhores fazendas. Numa das caminhadas cheguei até a Lagoa Preta, local bom de pescaria. Era uma segunda feira de carnaval, feriado escolar. Dia claro, muito sol, nenhuma nuvem. Tirei a camisa para aproveitar o calorzinho do sol e sem camisa andei por muitas horas. Subi em muitas mangueiras que havia pelos pastos, fartando-me ao chupar mangas deliciosas, maduras no pé. Na propriedade de um fazendeiro que gostava de novidades, havia uma plantação enorme de pêra. Comi delas também sem cerimônia.

Ao chegar à Lagoa Preta, encontrei Natal, meu primo, filho de Tia Elvira e Tio Alpineu, que tentava pescar bagres. Voltamos juntos. Ele e seu embornal com cinco bagres e eu com a camisa enrolada na cintura, as costas, o rosto e o peito ao sol.

No dia seguinte, minhas costas estavam cobertas de bolhas das queimaduras pela caminhada ao sol. Foram necessários muitos dias de cuidados de Beatriz, minha prima enfermeira, para que as bolhas desaparecessem e as queimaduras sarassem.

Esta foi um das ultimas vezes que saí para caminhar. A experiência não tinha sido boa e fui perdendo o interesse.

Passados tantos anos, as manhãs de abril, claras e frescas, ainda têm o mesmo brilho. O céu de profundo azul se funde no horizonte com as cores esmaecidas das serras.

Parece que a Natureza guarda com desvelo o encanto daquelas paragens, mantendo tudo como um verdadeiro Paraíso na Terra.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 20 de agosto de 2016

Conto # 958 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 01/02/2017
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