957-MANHÃS DE ABRL - 1A. PARTE
1ª. Parte
O Tempo e o tempo.
Escrevo de um tempo que ficou muito para trás: quando o tempo corria tranquilo, sem sobressaltos, pois no tempo da minha meninice os dias eram longos e cheios de aventuras. Era um tempo em que o próprio tempo era constante, as estações das chuvas, do frio, da seca e do calor duravam meses e as mudanças ocorriam lentamente.
Tinha pouco a ver com as estações oficiais – Inverno, Primavera, Verão e Outono. Falava-se em tempo do calor, do frio, da seca, das chuvas. No tempo do frio, que ia de meados de maio até fins de julho, a friagem era intensa, aumentada por muitos dias enevoados e impróprios para qualquer brincadeira fora de casa. Agosto era o mês dos ventos secos, quentes, que levantavam poeira das ruas sem calçamento. Bom para empinar raias e papagaios.
O tempo da seca, sem chuvas ia de abril a fins de agosto. As chuvas começavam em setembro. Se não chovia até dia oito de setembro, dia de Nossa Senhora Aparecida, organizavam-se procissões que levavam potes e latas com água até um dos cruzeiros (cruzes de madeira, levantados em lugares especiais, na cidade, nos campos ou em alguns morros), onde eram jogadas, acompanhadas de orações
O tempo das chuvas ia de outubro a março. Dias quentes entremeados por pancadas de chuvas refrescantes. Em janeiro, entretanto, costumava chover dias e dias seguidos, havendo alguns anos de chuvas ininterruptas o mês todo. Para aborrecimento das donas de casas, cujas roupas não podiam ser secas ao sol, que ficava oculto por longo tempo. Dentro das casas, mofo por todo o lado, devido à umidade do ar.
As “águas” terminavam em março, com temporais que enchiam os córregos e derrubavam árvores velhas. Era o tempo das enchentes das goiabas, porque acabava com as últimas goiabas que teimavam ficar nas goiabeiras, cuja produção grande era em janeiro, aproveitada para fazer goiabadas de vários tipos: mole (de colher), de partir (firme, mas macia), compota (a fruta em calda guardada em vidros), ou a goiabada cascão, com pedaços da fruta (mais dura, um pouco puxenta)
Entrava abril com dias claros, radiantes, iluminados, céu limpo, lavado. O sol era ameno, ainda havia ao redor do planeta uma grossa camada de ozônio que detinha os raios ultravioletas. Tempo de sair de casa, passear pelas praças, jardins, piqueniques à beira dos pequenos rios que cortavam a região rural.
As caminhadas
Era o tempo de minha meninice. Aos dez ou onze anos, meu tempo era fiscalizado e controlado pelos meus pais. Queriam saber para onde eu ia, com quem ia, quando voltava. Muitas vezes, a pretensão era vetada e não podia fazer o que desejava, ir onde queria. Eu era tímido e de poucas amizades. Gostava muito de andar pelos campos, longe das trilhas e das estradas, “no rumo do nariz”, ou seja, indeterminado. Claro que meus pais não permitiam. Mas deixavam que eu fosse sozinho, até a chácara de meus tios, distante uma légua (mais ou menos seis quilômetros) de nossa casa na cidade.
— Mãe, me deixa ir na chácara? — eu pedia, já pretendendo outra coisa, nos domingos pela manhã, ou mesmo aos sábados ä noite, prevendo uma saída bem cedo. Havia ocasiões em que minha mãe me pedia para levar alguma coisa para a cunhada, tia Elvira, como um pão assado no sábado, ou um embornal cheio de retalhos de panos, coisas que eram aproveitadas ao extremo. O jeito era então entregar a encomenda e da chácara, seguir em frente, sem destino nem hora para voltar.
Gostava de andar sozinho. Não tinha medo de nada, pois desconhecia os possíveis perigos constantes dos campos, córregos e morros: cobras, brejos de terras movediças, passagens perigosas, caixas de marimbondos em árvores baixas. Quando passava por campos com vacas e bois pastando, evitava, dando grandes voltas, sempre beirando as cercas (quando havia...). Nunca fui mordido por bicho nenhum nem pisei sequer num formigueiro escondido ou atolei em brejos suspeitos. Acreditava que tinha um Anjo da Guarda que me protegia.
Cachoeira Pedro Segundo
Quando saia para caminhar, nas brilhantes manhãs de abril, sem ter roteiro definido nem seguir por caminhos conhecidos, chegava a lugares já visitados por outras pessoas (como as beiradas dos córregos onde havia poços para nadar ou pescar) ou onde já tinha alguma construção, como capelas ou oratórios.
As águas do córrego do Godinho eram usadas pelo Matadouro Municipal e por um curtume. Eram, portando, as mais poluídas dos inúmeros córregos que corriam pelos vales e espraiados do município. Porém, após despencar por diversas pequenas cachoeiras num percurso de uns poucos quilômetros, apresentam-se quase que limpas, e no local chamado Pedro Segundo, caia numa queda horizontal de aproximadamente dez metros de altura, formando uma pequena lagoa eriçada de enormes rochas pretas e ponteagudas. Pular do topo da cachoeira era arriscado: os corajosos garotos que se atiravam de cima tinham de calcular bem aonde iriam se jogar, a fim de não cair em cima de uma das pedras. Por diversas vezes cheguei, em minhas caminhadas solitárias, até o Pedro Segundo, e estando o local totalmente deserto, aproveitei para refrescar-me no poço. Nunca tive coragem de pular lá de cima, onde era gostoso de ficar sentado sobre as lajes submersas na água que, poucos metros á frente, caiam com estardalhaço.
Naquela ocasião, correu a notícia de que um garoto havia caído do cimo da cascatinha sobre as pedras, quebrara um braço, e o local ficou como que amaldiçoado e passou a ser evitado.
Nunca mais fui ao Pedro II.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 20 de agosto de 2016
Conto # 957 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS