No cumprimento do dever
Gilberto Carvalho Pereira 29 de janeiro de 2017
A família de seu Raimundo Nonato, originária de um lugar esquecido no vasto Sertão Cearense, não sustentava ambição alguma. Eram todos agricultores de uma terra seca e sofrida. Mesmo assim, conseguiam tirar o sustento para uma ou duas refeições diárias: feijão, um pouco de arroz, adquirido em troca de feijão e milho, colhidos no sítio, farinha, proveniente da mandioca que eles próprios plantavam e fabricavam, e nada mais. Às vezes, também tinham café, quando a safra dos produtos plantados ultrapassava o estabelecido para uso próprio. Isso acontecia quando a chuva, nesse lugar inóspito, caía generosamente, permitindo a troca do excedente por alguns quilos do precioso pó. Seu Raimundo se sentia feliz em meio à esposa e aos três filhos homens, Edinilton, Edilberto e Edinaldo, o menos conformado com a situação que levava.
A vontade de Edinaldo era ir morar na capital, estudar e sair daquela pobreza, prometendo sempre levar toda a família quando estivesse bem de vida, dizia ele. Seu Nonato, como era conhecido na localidade, não via com bons olhos a ambição do filho. Ele mesmo fora criado ali, pelos seus pais e avós. Nunca sentira vontade de ter algo melhor, aquilo lhe bastava. Mesmo assim, consentiu e abençoou a ida do caçula para a cidade grande, sem antes fazer-lhe mil recomendações, todas ouvidas pelo filho, com respeito e promessa que assim ele faria.
Os anos se passaram, Edinaldo já homem feito e com instrução de nível médio, conseguiu entrar para a polícia do estado, na condição de soldado. Logo depois se casou com a jovem Marieta, também de família humilde e de boa índole. Eles tiveram apenas um filho, que cresceu em meio a uma educação rígida e disciplina militar exagerada. Edinaldinho foi criado oprimido e sem muito direito, mas com muitas obrigações. Aos quinze anos, reclamava muito da ausência do pai, agora Sargento Edinaldo, pertencente ao Grupo de Ações Táticas Especiais da Polícia Militar. Nessa atividade o Sargento passava dias, semanas e meses sem voltar para casa. Quando voltava estava sempre cansado, irritado e não queria saber dos problemas domésticos, pois, dizia ele, Marieta tinha tudo para dar conta dessas coisas rotineiras.
Edinaldo Filho, aos poucos foi afastando-se de casa. Sua mãe já não tinha controle sobre o adolescente, que se aproximou de um grupo de marginais, pois dizia que queria ser importante também, como o pai. No grupo fez amizade com o chefão, cara sem escrúpulo e sem caráter. Malvado até demais! Assaltante, estuprador, traficante de droga, delinquente desde adolescente. Era temido por todos do grupo. Edinaldinho via na figura do chefão o seu ídolo, que mascarava o comportamento do pai militar. O chefão sempre contava suas aventuras para o filho do policial. Já o Sargento não gostava de falar de seu trabalho para o filho. Só exigia dele obediência cega às suas ordens. A mãe não contava para o marido sobre o comportamento estranho do filho. Ela tinha medo que isso desagradasse ao militar, caso ele viesse a saber, o filho estaria em maus lençóis. Nem mesmo perante a esposa o marido militar negligenciava as regras militares, aprendidas na caserna. Um homem honesto, durão em suas atitudes e implacável com o crime e criminosos. Seu comportamento e suas ações em trabalho o agraciaram, por diversas vezes, com medalhas e diplomas de Honra ao Mérito e Bravura. Era militar exemplar, a família não poderia decepcioná-lo, dizia a esposa obediente e amedrontada.
Edinaldinho já ostentava folha comprida de pequenos delitos, mas nunca fora punido, pois nunca fora apanhado. Achava-se esperto, o chefão sempre o protegia até que ele se viu em grande enrascada. Depois de um assalto a um banco, o grupo foi apanhado pela polícia, o chefão estava sendo levado preso por um militar, o rapaz não teve dúvida, para salvar seu herói atirou no policial, matando-o. Ambos fugiram do local e novamente Edinaldinho ficou impune, pois não fora reconhecido. Uma caçada ao grupo foi empreendida, o Sargento Edinaldo foi convocado a participar e estava entre os militares que estouraram o covil dos criminosos.
Cercados, parte dos criminosos entregou-se. Outros, como o chefão e o filho do Sargento continuaram homiziados em um pequeno barraco, de difícil acesso aos policiais. Sargento Ednaldo se ofereceu para avançar sozinho, ignorando mais uma vez o perigo que aquilo representava. Ele não sabia da presença do filho naquele local. A surpresa foi estarrecedora, o filho à sua frente apontava uma arma para o pai, o policial herói não titubeou ao ter certeza da intenção do filho. Ríspido diálogo foi travado:
— Senhor, por favor abaixe a arma e levante as mãos!
— Desta vez o senhor não vai mandar em mim, respondeu o rapaz.
— Ordeno mais uma vez, deponha a arma e levante as mãos!
— O senhor foi sempre ausente em minha vida, agora vem dar ordens como eu se fosse uma criança. Onde estava você quando eu mais precisava de sua presença? Você nos abandonou desde cedo. Só queria ser herói.
O policial, consciente que o seu trabalho e missão era defender a sociedade, mesmo que ela, ali, naquele momento, estava representada pelo seu filho, continuou na sua tentativa de fazer o “marginal” desistir de intento de atirar, falou quase gritando:
— Senhor, pela última vez, abaixe essa arma. Em seguida o Sargento disparou sua arma e acertou o ombro direito do garoto que, surpreso, deixou-a cair ao chão. Ele, então, se prostrou de joelhos ao chão e não mais esboçou qualquer reação. Ao seu lado passava o chefão, chorando e gritando: — Esse que está aí ajoelhado é o chefão, foi ele quem matou o soldado durante o assalto do banco.
O garoto levantou a cabeça em direção à cena ao seu lado, e a ficha caiu, aquele não era o seu herói. O herói era o seu pai, que acabava de salvar a sua vida.
O pai, com toda altivez pelo dever cumprido, aproximou-se do filho, abraçou-o e ambos ficaram assim por alguns minutos. O filho pediu perdão, jurou que amava o pai e pediu que ele não o abandonasse mais. O pai, chorando muito, prometeu ao filho que abandonaria a polícia e iria cuidar dele pelo resto da vida. O garoto, limpando as lágrimas que rolavam em sua face pediu que o pai não fizesse isso, que ele tinha orgulho da atividade que o pai exercia e que ele era o seu herói verdadeiro. E continuou falando:
— Cumprirei minha pena e procurarei ser um verdadeiro homem, um homem como o senhor, completou o garoto.
Outros policiais se aproximaram, pediram para o pai se afastar e deram ordem de prisão a Edinaldinho, pois ele já não era mais menor de idade. O pai, de longe, viu o filho sendo colocado dentro do carro da polícia e se afastando. Ainda recebeu do filho um demorado aceno e um sincero sorriso. De cabeça erguida, o pai também sorriu e desejou-lhe boa sorte e fé em Deus.