NÃO HAVERÁ AMANHÃ

Abriu a ducha e deixou-se estar. O banheiro era o seu melhor companheiro. Podia correr para lá sempre que se sentia sufocada, sobrecarregada e, enfim, sentar-se sossegadamente na tampa do vaso sanitário e ler as notícias de sua timeline ou atualizar seu insta. De porta afora a correria bestial das crianças continuava, enquanto o marido tentava em vão dar comida ao bebê. Um suposto “piriri” era sempre uma desculpa perfeita, pois ninguém ali ousaria interromper uma mãe de família numa hora dessas. Ficou como queria, passando os dedos na tela do celular, lendo imagens, dando zoom nas fotos, reconhecendo o quanto o tempo cooperou com fulano, nem tanto com beltrano. Teceu um comentário, publicou um pensamento supostamente brilhante, algo que soasse como “tô feliz pra caralho”, tipo Luana Piovani, “ubuntu”, “gratidão” “hashtag tamo junto”. Seus dedos se moviam tão rapidamente que respirava fundo a ponto de sentir uma leve tontura. Estava cansada mas estava feliz. E por mais que parecesse o contrário, gostava daquela vida atribulada, cheia de acumulação de funções e papéis. O casamento não fora aquilo que esperava, a maternidade não era um mar de rosas, mas tudo era perfeitamente agradável e ela se adaptou rapidinho a essa felicidade real. As notícias não eram nada boas, o mundo estava um caos: corrupção internacional, terrorismo fragmentado, ascensão da intolerância e dos discursos de ódio, negação das tragédias humanas, políticas de opressão e totalitarismo, extermínio da juventude negra, descriminalização da violência doméstica num desses países por aí, aviões caindo de um céu de brigadeiro, juízes eliminados e a operação lava-jato posta em risco. Ufa! Perguntava-se agora, haveria um amanhã onde seus filhos poderiam atuar como cidadãos plenos? Desligou o chuveiro, deu descarga e abriu a porta, só então percebeu que não molhara os cabelos e teria que dormir sem tomar um banho de verdade ou fingir um calorão daqueles para assim poder garantir seu banho de fato. Ao sair, viu que perdera a noção das horas, por incrível que pareça, as crianças já estavam no quarto, prontinhas para dormir. O bebê agasalhado, tirando uma soneca no colinho do papai, que por sua vez, cochilava diante da TV. Encheu os olhos d’água e quase gritou: “Vem aqui, gente”! “Venham ver minha família de margarina!” Foi recolhendo os corpos, distribuindo cada qual ao seu travesseiro, deu beijos nas crianças, deu um beijo no marido e foi fazer aquela lista de compras e afazeres para o dia seguinte. Tomou outro banho, afinal, foi um piriri daqueles. Riu sozinha. Recolheu-se ao seu lado da cama e dormiu profundamente. No dia seguinte, sábado, o marido levantou-se bem devagar, saiu escorregando da cama, discretamente, preparou o café das crianças, calçou o tênis e saiu para correr. Era o dia de a mamãe ficar na cama até mais tarde. Logo, a faxineira estaria por ali, ajeitando a desordem de ontem, dando uma mãozinha com as crianças. Ele voltaria a tempo de irem almoçar fora. Meia hora depois, as crianças sentaram em frente à TV, enquanto comiam sanduíches, lambuzando os pijamas. Quinze minutos depois, o bebê tentava arrancar o móbile dependurado sobre o berço. E se ria do som produzido pelo penduricalho do brinquedo. Não sentia fome, é certo que não. Divertia-se em seu pequeno mundo gradeado, era prisioneiro na vara da 1ª infância. Dez minutos depois, as crianças zapeavam com o controle, alternando jogos no celular da mamãe, cuja bolsa estava jogada num canto, expostos os objetos, cartões e dinheiro. O batom virou um giz e transformava a parede em lousa. O interfone tocava insistentemente. As crianças corriam pela sala, o som da TV abafava o choro do bebê. Minutos depois era a campainha que tinia corroborando para aquela sinfonia desarmônica. As crianças subiam nos móveis buscando um "não sei o quê" lá em cima; sequer ouviram o estouro da fechadura e o pai rolando pelo chão. Atrás do pai a faxineira, atrás da faxineira o porteiro. Ouviu-se um grito de desespero, e nos braços do pai o corpo da mãe inerte. A serenidade de suas feições destoava completamente do cenário em volta.

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Quem esteve ali não pode negar que havia certa beleza em seu desfecho mesmo sabendo, que ao menos para ela, não haveria um amanhã.

Adelaide de Paula Santos

29/01/2017 - Domingo ensolarado - Acho que vou tomar um café mais tarde lá no Ernesto.

Um conto se faz de migalhas do cotidiano, de vida ou quem sabe, de morte. E, a vida é certamente a melhor ficcionista que existe. Este conto foi inspirado em fatos reais com uma pitada de imaginação. Continuo ouvindo a trilha instrumental de La, la, Land. Estou com os acordes na cabeça...

Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 29/01/2017
Reeditado em 29/01/2017
Código do texto: T5896547
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