A felicidade está lá fora
O ônibus chegou ao ponto antes mesmo que eu pudesse digitar as primeiras palavras. Trazia consigo um amontoado de pessoas tristes que iam para os seus empregos tristes. Entrei nele como quem adentra as brumas de um sonho. Entrei vazio e percorria o corredor procurando onde cochilar por quinze minutos. No entanto, eu sabia que não cochilaria. Ela estava lá.
-Ei senta aqui! Vamos abrir o dia com um self!
-Oi, bom dia! De quantos selfies você precisa para ser feliz?
-De todos!
-Obrigado por guardar um lugar para mim.
Olhava para o seu rosto, mas enxergava apenas sua grande boca e seus alvos dentes. Tentava, sinceramente, prestar atenção as suas palavras, mas a realidade lá fora era mais atrativa. Uma senhora alta, magra e de óculos escuros passeava com seu poodle enfeitado. Duas crianças acompanhadas de seus pais corriam de mãos dadas. Motos, carros e vans de passageiros disputavam espaço no asfalto. Ela olhava para mim e eu olhava de soslaio para o mundo lá fora.
-Quanto mais conheço as pessoas, mais admiro os animais, ela dizia.
-É por que você não conhece as pessoas que eu conheço, eu disse para confundi-la.
-E quem você conhece que vale, pelo menos, a vida de um sagui da Amazônia?
-Você vale muito mais!
Fez cara de menina tímida e esboçou um sorriso pernóstico. Cocei o queixo, franzi a testa e aparentando curiosidade mostrei-lhe a praça central, nesse momento, apinhada de curiosos para ver o espetáculo dos circenses. Jogou a cabeça para trás num sorriso e disse que quando era criança gostava muito de circos e palhaços. Deu-me uma leve cotovelada e falou que prefere coisas mais sérias.
-Existe coisa mais séria do que o humor?
-Existe, por exemplo, a falta de humor.
-Mas isso não é sério, eu falei, isso é fraude!
-Fraude, ela disse, é viver sem ter vontade.
Palmeava o celular e lançava-me olhares furtivos. Vez em quando nossos braços se tocavam na altura do cotovelo. Eu sentia o calor de sua pele contra a frieza do meu corpo. Olhava para fora do ônibus, tentando agarrar-me a qualquer forma de devaneio.
-Você se sente desconfortável na minha presença?
-Não, apenas sinto o peso da obsolescência invadir o meu corpo.
-Sou parecida com você. A minha adolescência é obsoleta.
Uma fila enorme atrasava o ônibus. Algumas pessoas olhavam seus relógios e esboçavam ares de descontentamento. Ela selecionava uma, dentre as várias músicas na sua playlist, e esperava para ver se eu iria continuar a conversa. Tinha pouco assunto e uma preguiça enorme para dialogar. Preferia o monólogo das imagens. Lá fora, um acidente completo conclamou a atenção de todos.
-É por isso que não se pode confiar nas pessoas, segredou-me de cabeça baixa.
-Foi uma fatalidade, querida.
-Fatalidade é o resultado, ela disse.
-E o resultado é a soma do início com o meio, tive de concordar.
Ainda olhando para fora avistei o ponto em que deveria descer. Sabia que na manhã seguinte se não quisesse encontrá-la e dividir com ela o mesmo banco, deveria acordar mais cedo. Acordar mais cedo pressupõe dormir mais cedo, sendo assim não tinha escolha já que ficaria nas redes sociais até de madrugando teclando com ela. De manhã, se sobrasse tempo, concluiria o primeiro módulo da Facul de Filosofia.
-Não liga não, viu. Não estou muito legal hoje!
-Não tem importância, Mel. Amanhã serei eu quem não vai estar legal.
-Você promete que não vai ficar o tempo todo olhando pela janela?
-Prometo que vou olhar só pra você.
Beijei de leve seu rosto e desci. Fiquei olhando o ônibus se distanciar, antes de atravessar a rua. Quando toquei o portão de entrada recebi uma msg que dizia: “Se vc não amasse a Filosofia, seria fácil p/ vc amar qlq uma”. Sorri, depois fiquei pensando que os jovens amam demais e, às vezes, irrefletidamente. Não consegui, naquele momento, concluir o raciocínio, pois um grupo de trabalhadores como eu se aproximava em silêncio. Traziam os rostos limpos, os uniformes impecáveis e seus smartphones nas mãos.