O Último LIVRO
Dia do Aniversário de Milena...
Apesar de ainda restarem quatro dias da primavera, os raios de sol da manhã, na varanda do apartamento, indicavam que aquele seria um domingo típico do alto verão no Rio de Janeiro.
Mila, como era conhecida Milena Moutinho, a protagonista desta pequena narrativa que discorrerá sobre a amizade, um dos sentimentos mais puros no relacionamento entre as pessoas, havia acordado cedo naquele domingo de dezembro. Ela precisava concluir o texto e enviá-lo à Libra, editora com a qual tinha contrato, e sabia que, por volta das dez horas, seus filhos, nora, e netos chegariam para o almoço de comemoração dos seus setenta anos.
Ela estava trabalhando no “home office” do seu apartamento, pois o calor na varanda já a incomodava, quando ouviu a voz de Zara, sua filha, chamando-a da sala, onde se encontrava com os filhos Sofia e Misael de sete e cinco anos.
— Mãe! Chegamos e tomei a liberdade de entrar.
— Oi querida! — respondeu Mila caminhando no corredor em direção à sala de visitas.
— Zara, você tem a chave do apartamento há quase cinco anos. E sempre que vem aqui é a mesma coisa: “tomei a liberdade de entrar” e fica em pé, junto com as crianças, no hall de entrada como se fossem estátuas. Você sabe que normalmente estou na varanda ou no escritório — concluiu a mãe em um tom de voz carinhosa e abrindo os braços para receber os netos.
— E quase sempre ouço a mesma resposta: “estou no escritório” — respondeu Zara no mesmo tom de voz, abraçando e beijando o rosto da mãe.
E como acontecia regularmente nessas visitas, depois dos beijos, dos abraços e de uma rápida conversa sobre os acontecimentos da semana, as crianças, antes de descerem para brincarem no “playground”, abraçavam a avó e a conduziam ao escritório onde sentavam nas almofadas, colocadas no chão especialmente para esse fim, e pediam para Mila contar uma história.
— Hoje, a nossa história será sobre...?
***
Era uma vez um bebê que gostava de ouvir as conversas das pessoas e compreender tudo que se passava ao seu redor. Ele era bastante curioso e de nada esquecia. Certa feita, o bebê escutou uma voz que o deixou encantado. O seu coraçãozinho, pela primeira vez, bateu um pouco mais rápido. Ele ficou imóvel e atento, queria entender o assunto daquela conversa, quando de repente sentiu o calor de uma mão o acariciando. Não era da sua mãe nem do seu pai, mas tinha certeza que era da mesma pessoa que estava falando. Para agradecer o carinho, ele se mexeu lentamente.
E, enquanto se movimentava em seu universo amniótico, ouviu:
— Oh! A minha netinha está se mexendo. Ela está me percebendo. — Oi bebê! É a vovó Lucinda.
Então, naquele instante, o bebê soube que aquela voz era da sua avó.
— Oi vovó! Gostei muito do seu carinho.
— Oi bebê! Gostei muito de sentir você se mexer.
Foi assim que elas, a neta e a avó, se conheceram e conversaram pela primeira vez.
O tempo passou...
E numa segunda-feira, poucos dias antes do natal daquele mesmo ano, o bebê, ouvindo a conversa dos seus pais, entendeu que aquele era um dia muito especial. Ele iria nascer. Mudaria de universo, deixaria de ser um enclausurado no saco amniótico e passaria a viver no mundo das pessoas, dos animais e das plantas. Poderia ver e tocar em tudo que só conhecia até então por nomes. Sabia que a vovó estaria lá aguardando por ele.
E no finalzinho da tarde daquele dia de verão, no quarto da maternidade, a avó abraçou pela primeira vez a sua netinha. Conversaram bastante, mas agora uma olhando para outra. Os olhos das duas brilhavam com o mesmo brilho de felicidade, as vozes tinham o mesmo tom...
***
— Oi Sofia! Você não quer ouvir a história que a vovó está contando? O que você e seu irmão estão cochichando?
— Vovó!
— O que foi Misael? Você também não quer ouvir?
— A minha irmã disse que você já está muito velha, por isso esqueceu que um bebê não sabe falar.
— Sim, a vovó já viveu bastante. Hoje faço setenta anos, mas não esqueci nada. Ainda lembro-me de quase tudo que vivi, principalmente da época que eu tinha a idade de vocês.
Fecho os olhos e vejo as minhas festinhas de aniversário: a primeira foi da Fada Sininho, a de dois anos, na casa da minha avó, foi da “Pepa”, uma porquinha muito famosa naquela época. Depois da “Fada Elsa” e a de quatro anos, novamente na casa da minha avó, foi da “Ladybug”.
— Eu disse que a história de hoje era muito linda, quase um conto de fadas, sobre uma netinha, chamada Graziela, e sua avó Lucinda. Acho que só eu conheço essa história.
— Sentem aqui mais perto da vovó. Vamos lembrar alguns personagens que vocês gostam. Por exemplo: a Fada Sininho pode voar. Não pode? A Minnie e Mickey podem falar. Não podem? Então porque o bebê não pode conversar com a sua avó?
— Vocês querem ou não ouvir a história de hoje?
— Eu quero.
— E você, Sofia?
— Eu também quero.
— Vovó, posso fazer uma pergunta?
— Claro, meu anjo.
— Essa história do bebê está nos livros que você escreve?
— Não. Ainda não. Mas quem sabe um dia poderá estar.
— Olha! Daqui a pouco sairemos para o almoço. E à tarde vamos comer bolo de chocolate com castanhas.
— E “parabéns”?
— Claro, Misael, cantaremos “parabéns pra você”.
— Então? Vamos continuar a história...
***
Naquela primeira conversa, Graziela adorou ficar no colo da vovó, havia alguma coisa que as unia. Ela não sabia o que era. Talvez, pelo que ouvia das conversas dos adultos, fosse o que todos chamavam de “verdadeira amizade”. O mesmo deve ter acontecido com a avó Lucinda quando abraçou a netinha.
Nos dias, meses e anos que se seguiram, o bebê foi crescendo e vivendo normalmente com seus pais, avós e tios. E o amor e a amizade, entre a avó e a neta, também cresciam com o passar do tempo.
Diversos foram os acontecimentos, as brincadeiras e os momentos mágicos que Graziela viveu com a vovó Lucinda e que jamais esqueceu. Hoje, vou contar alguns:
No Carro, nos Restaurantes e na Vida
Graziela ainda não tinha completado dois anos, mas sempre que a avó estava presente nos passeios ou nas saídas do dia a dia de carro, as duas tinham que sentar lado a lado no banco traseiro. Brincavam com as bonecas, contavam histórias e cantavam cantigas de roda. A neta não deixava ninguém sentar entre ela e a avó. O mesmo acontecia nos restaurantes, as duas sempre juntas. Eram tantas brincadeiras, que a neta, até os cinco anos de idade, apesar de ser repreendida pelos pais, vez por outra na conversa utilizava a expressão “vovó doidinha”. A avó não se importava, pois sabia que a expressão vinha carregada de carinho e que gramaticalmente poderia ser tratada como uma metáfora subjetiva e momentânea, sem que houvesse uma relação com o significado real do vocábulo. Era uma linguagem do coração e não da cabeça.
— Vovó, vamos brincar de contar os carros? Eu quero “yellow”. O seu é “green”.
— Está bem, Graziela. Acho que desta vez vou ganhar.
Com o decorrer da vida, tornou-se natural para toda a família ver a neta, digamos, agarrada na avó. Mesmo quando Graziela tornou-se adulta, formada e depois casada, em todos os lugares que estivesse com a avó era comum vê-las conversando, e sempre com o mesmo brilho nos olhos do primeiro encontro na maternidade. E isso durou toda a eternidade da avó. Poucas foram as ocasiões que alguém as presenciou em um carro ou num restaurante que não estivessem lado a lado conversando.
Na Disney
Era início de novembro, um mês antes de completar o seu segundo ano de vida, quando Graziela ouviu o pai e a mãe conversarem sobre um passeio à Disney. Naquele momento, por ser a primeira vez que escutava alguém falar num parque especial chamado Disney, o assunto não lhe interessou. Mas quando o pai lhe disse que a vovó Lucinda também iria, os seus olhinhos brilharam.
Os quinze dias que passaram em Orlando, apesar da pouca idade do bebê, foram inesquecíveis para ambos, pois anos e anos depois, de vez em quando, a avó e a neta conversavam e recordavam aquela primeira visita ao Magic Kingdom. Não há uma única foto daquele passeio em que a neta e avó não estejam abraçadas ou de mãos dadas.
Foi um passeio tão maravilhoso que...
***
— Vovó Mila, posso falar?
— Sim, pode.
— A história não está boa. Não quero mais escutar. Quero ir ao play andar de patinete.
— E você Misael, também quer ir andar de patinete com a sua irmã?
— Quero.
— Tá bom. Falem com a mãe de vocês.
— Vovó, você não quer ir com a gente lá embaixo?
— Não Sofia. Estou um pouco cansada. Vou ficar aqui e terminar de contar a história.
— Vai contar pra quem?
— Para mim mesmo. Vou contar bem baixinho. Eu adoro essa história.
***
Foi um passeio tão maravilhoso que elas, a avó e a neta, em diversas outras oportunidades repetiram a viagem. Estavam lá quando a avó comemorou o quinquagésimo aniversário, na semana em que a neta fez quinze anos, na ocasião em que Graziela estava no último período da faculdade terminando a graduação em letras. Também na data em que a neta, já casada, levou pela primeira vez o seu casal de filhos.
Decorando o Apartamento
O talento para trabalhos artesanais e decorações da avó Lucinda era inato. Desde o nascimento do seu primeiro filho que não passava um Natal, uma semana da Páscoa e um dia das bruxas, Halloween, em que ela não transformasse alguns ambientes da casa em verdadeiros mundos mágicos. Da mesma forma que os filhos, a neta também se encantava com tantos personagens, cenários, bonecos, renas, coelhos e muito mais. Havia movimento de carros, de carroças e de trens. Alguns personagens, como o “Snowman”, cantavam canções que fascinavam Graziela.
A decoração da avó, respeitando as grandezas dos espaços, era mais atraente às crianças do que as de alguns shoppings da cidade. Graziela que nasceu e conviveu, toda a sua infância com esse mundo maravilhoso, ao longo dos anos passou a ser a ajudante da avó nessas verdadeiras montagens teatrais que durou toda a eternidade de Lucinda.
Aniversários
Dos três aos oito anos, Graziela escolhia os temas dos aniversários dos pais, dos avós e claro o dela. Ela ajudava a avó e dava opiniões de como arrumar os personagens na mesa junto ao bolo.
— Graziela, está chegando o dia do meu aniversário. Como vamos enfeitar o bolo?
— Já sei, vovó! O seu será do Pica Pau, o do vovô do Mickey, o da mamãe da Pepa, o do papai dos Minions.
— E o seu?
— Da Minnie! Não, não! Será da Ladybug!
E assim, as duas se divertiam comprando os enfeites, as miniaturas dos personagens, fazendo os docinhos e arrumando a mesa. Todos adoravam a surpresa, pois o motivo da festinha era segredo. Elas montavam tudo na sala de leitura do apartamento da avó e só na hora de cantar “parabéns pra você” os demais participantes, inclusive o aniversariante, conheciam o tema da festa.
A Casa de Bonecas
Graziela, por ser a primeira neta, tanto dos avós paternos como dos maternos, ganhava muitos presentes dos pais, dos tios e dos avós. Mas do seu tempo de criança, a casa de bonecas, que ganhou da avó Lucinda no seu terceiro Natal, foi o único brinquedo que ela jamais se separou. Por diversas vezes, quando na adolescência e depois já adulta, foi incentivada a doá-lo à outra menina. A resposta era sempre a mesma: “vou pensar”.
Até a neta completar quinze anos, a avó continuava comprando os acessórios e personagens da família “Sylvanian” para os diversos cômodos da casa, que tinha um lugar especial no quarto de hóspedes do apartamento de Lucinda. Quarto esse que deixou de ser de hóspedes e passou a ser da Graziela.
Mesmo depois de adulta, de casada e de ser mãe, sempre que ia à casa da avó, Graziela adorava mexer no seu brinquedo de infância. Mostrava-o para os filhos. E, enquanto reposicionava os personagens e acessórios, comentava: — Crianças, esta linda casinha de bonecas a mamãe ganhou da avó Lucinda no natal quando tinha três anos de idade. E ali parada, em pé e quase hipnotizada, olhava para o seu eterno brinquedo e falava consigo mesmo: “Incrível como a vida é esplêndida por nos mostrar pessoas especiais como a minha avó Lucinda, que nos transmiti até hoje tantas alegrias em conversas jubilosas e conta-nos histórias lindas”.
A Viagem de Estudo
O tempo passou, passaram as brincadeiras da infância. Passaram os descobrimentos da adolescência. E aos vinte e cinco anos, o bebê da vovó Lucinda, agora uma linda mulher, inteligente, formada em letras e pós-graduada em literatura estava se preparando para passar dois anos estudando em Londres.
Ainda não tinha completado quatro anos, quando por vontade própria, à noite, antes de seguir para o quarto na hora de dormir, ia até a estante na sala para escolher um livro que queria ouvir a história. Ela sabia o local onde os livros infantis ficavam. Subia cuidadosamente na poltrona e na ponta dos pés pegava um exemplar. De vez em quando, ela puxava três ou quatro livros e alguns caiam no chão e lá ficavam até o dia seguinte. Graziela, mesmo sem saber ler, conhecia de cor diversos títulos, pois ela os memorizava pelas figuras.
— Vovó, pode ler este, o do Saci?
— Claro, querida. Vá pra sua cama que eu já vou.
Por viver cercada de pessoas que tinham o hábito da leitura, Graziela na adolescência tornou-se uma “amante da literatura”. E todas as noites ela seguia, e segue até hoje, pro quarto carregando um livro.
No dia da partida para Europa, as duas acordaram cedo e conforme haviam combinado, logo depois do café fizeram uma leitura detalhada no planejamento da viagem e no resumo da programação das atividades previstas para as primeiras semanas em Londres. Utilizando as imagens do mapa online interativo do “Street View”, disponível no Google, Graziela mais uma vez mostrou à avó o trajeto do apartamento, que residiria por um período de dois anos, até a “Faber Academy”, localizada na avenida “Great Russell” em Londres, onde faria o curso “Writing a Novel”.
Cerca de um ano antes da data da viagem, elas já estavam pesquisando, dentre as diversas instituições acadêmicas que ofereciam vagas aos estrangeiros, qual seria a mais indicada para Graziela cursar. Por, digamos certa coincidência, naqueles dias Lucinda estava lendo um romance de um autor britânico que estava fazendo sucesso com sua primeira obra literária. Tratava-se de S. J. Watson, que havia realizado o curso “Como escrever um romance” na Faber Academy. E o seu trabalho acadêmico resultou em um livro chamado “Antes de dormir”. Quando a neta ouviu aquele relato da avó, não teve dúvida, optou pela mesma escola e mesmo curso de Watson.
A ideia de estudar em Londres surgiu na cabeça de Lucinda quando Graziela estava com quinze anos e já demonstrava um grande interesse nas palavras e na literatura. Apesar de a data da partida ocorrer cerca de dez anos após a viagem ser idealizada, a avó ainda não estava conformada em se afastar da neta por tanto tempo.
— Querida, não esqueça o nosso trato de mantermos contato por vídeo conversa nas terças e quintas–feiras depois de suas aulas. Eu estarei atenta ao celular, aguardando a sua chamada.
— Não se preocupe, vovó. Não me esquecerei das nossas conversas por vídeo. E, além do mais, estaremos juntas a cada quatro meses. Ou você não vai cumprir o que me prometeu? Visitar-me pelo menos três vezes por ano?
E assim aconteceu. Elas mantiveram regularmente contato pela internet e Lucinda, como havia prometido, viajava a cada quatro meses para ficar junto da neta em Londres.
O tempo passou, passaram as diversas fases de estudos. Graziela voltou para o Brasil. Passaram os descobrimentos da vida adulta e dos namorados. E aos trinta cinco anos, o bebê da vovó Lucinda, uma linda balzaquiana, já estava casada e grávida do primeiro filho.
E elas continuavam amigas, amigas para sempre, juntas em todas as fases da vida. E por mais incompreensível que poderia parecer às pessoas, Graziela não se separava da avó. E o mesmo acontecia com Lucinda que, enquanto durou a sua eternidade, não se afastou da neta...
***
Zara, que havia descido com os filhos para o “playground”, retornou ao apartamento e caminhando em direção ao escritório de Mila, chamou num tom de voz demonstrando certa pressa:
— Mamãe!
— O que você quer, Zara? Estou terminando de gravar uma narrativa. Amanhã cedo, a Sra. Polina, funcionária da Libra Editora, vem pegar o material para ser digitado. Então, preciso terminar esse capítulo ainda hoje.
A filha sentou-se ao lado da mãe e disse:
— O meu irmão acabou de chegar com a esposa. Já podemos ir para o restaurante, a nossa reserva no Ráscal é até às treze e trinta.
E, carinhosamente, ajeitando o cabelo de Mila com as mãos falou — Mãe! Hoje é um dia muito especial para todos nós, a senhora completa setenta anos. Será que não pode parar de trabalhar um pouco? É o seu novo romance?
— Sim, querida. Estou trabalhando no texto há quase dez meses. Não me adaptei a esse modo de produção. Primeiro eu gravo as minhas ideias, depois Polina digita e antes de enviar à editora tenho que revisar o texto impresso. Mas devido ao agravamento da síndrome do túnel do carpo, estou com muita dificuldade de digitar no notebook.
— O livro já tem um título, ou a senhora manterá segredo como sempre fez?
— Zara, minha querida, manterei o mesmo procedimento. Você e o seu irmão só conhecerão a história depois de publicada.
Mas desta vez, gostaria de ouvir a sua opinião sobre os possíveis títulos: “Uma História de Amor e de Amizade” ou “Eternas Amigas” ou “Amigas para Sempre” ou “Quase uma Memória”.
— Oh! Não acredito no que estou ouvindo! — de forma eufórica e abraçando a mãe, Zara pergunta:
— A senhora finalmente está escrevendo sobre a minha bisavó Lucinda?
— Querida, estou terminando um romance que tem como tema central a amizade, um dos sentimentos mais puro no relacionamento humano. Não mudei e não pretendo mudar meu estilo literário. Crio personagens que vivem num mundo imaginário. Sou uma ficcionista. — Mila, segurando a mão da filha, respondeu pausadamente em um tom carinhoso de voz.
— Zara, não se precipite nas suas conclusões. Em breve você poderá ler o livro.
— Está bem, mamãe. Agora vamos ao almoço, depois voltaremos ao assunto do título.
Vinte Dias após Milena Completar Setenta Anos...
Logo após entregar à Libra o texto final do romance, Mila divulgou uma nota aos seus diversos agentes informando que estava se aposentando, e que não renovaria os contratos visando novas obras literárias. No comunicado, a autora preferiu omitir a verdadeira causa de não mais aceitar compromissos futuros devido a sua impossibilidade de digitar os textos.
Mila, como de hábito, havia acordado cedo naquele sábado de início de janeiro e, sentada à mesa, no canto esquerdo da varanda, em uma cadeira com duas almofadas, havia iniciado a leitura do romance “Expurgo” da finlandesa Sofi Oksanen, uma autora que obteve o reconhecimento da crítica literária em seu primeiro livro. Ela gostava desse tipo de sucesso conseguido por alguns romancistas porque também havia alcançado esta façanha quando publicou “Dois Brasileiros em Moscou”, uma crônica que escreveu, durante os estudos em Londres, inspirada nos relatos de seus avós paternos que haviam morado na Rússia por alguns anos.
Ela não conseguia manter a concentração na leitura, precisava conversar com a filha. Queria ouvir a opinião dela sobre a proposta que tinha recebido, inicialmente por um e-mail e depois formalmente por uma carta com o selo do “Royal Mail”, da Faber Academy.
Levantava-se constantemente, caminhava até a sala e ficava ali em pé parada, olhando para o seu relógio preferido, um presente que tinha herdado da avó. Tratava-se de um “Cuco”, muito antigo, modelo Casa da Floresta Negra, original da Alemanha e que desde seus primeiros anos de vida adorava ouvir o tique – taque e o canto daquele pequeno pássaro de madeira que tantas vezes, do colo da avó, acariciou o seu bico.
Tão logo ouviu: “cuco – cuco” oito vezes, pegou o celular que estava na varanda ao lado do livro e ligou:
— Alô, Zara?
A filha identificando a chamada pelo número e reconhecendo a voz da mãe responde:
— Oi, mãe, sou eu. Está tudo bem? Por que ligando a essa hora?
— Sim, está tudo bem. Quero falar contigo.
— Ok, mamãe. É sobre o novo livro? Já terminou de escrever, ou melhor, de gravar?
— A versão final do texto seguiu para editora na terça-feira, dois dias depois do nosso almoço — respondeu Mila apressadamente, deixando transparecer que queria mudar de assunto.
— Mãe! Pelo tom da sua voz, estou achando a senhora um pouco aflita. Está tudo bem?
— Sim, já disse que estou bem. Ontem à tarde recebi um convite e gostaria de ouvir a sua opinião. Você não quer vir aqui? Podemos tomar um café e conversar um pouco.
— Claro, em trinta ou quarenta minutos estarei aí.
Mila, que realmente não estava conseguindo concentrar-se na leitura, dirigiu-se à copa. Arrumou a mesa para um café da manhã com a filha. Além dos brioches e do melão cortado e mantido na própria casca como ela gostava de comer, colocou numa pequena travessa de porcelana, decorada com a “London Bridge”, alguns biscoitos champagnes, os preferidos da filha.
— Oi mãe! Já cheguei e tomei a liberdade de entrar. Atrasei um pouquinho porque tive que tomar algumas providências lá em casa. — disse Zara em voz alta parada na sala de visitas do apartamento de Mila.
— Oi querida! Estou na copa.
Ao ver a filha chegando à porta da cozinha, Mila pergunta:
— Tudo bem com você? E as crianças? — E sem aguardar a resposta, disse:
— Enquanto tomamos o café, falaremos do convite que recebi.
Na conversa, Mila conta à filha que havia recebido uma proposta da Faber Academy, de Londres, para lecionar no curso “Como escrever um romance”. Respondendo aos diversos questionamentos de Zara, ela menciona que aos vinte e cinco anos tinha realizado esse mesmo curso em Londres por sugestão de sua avó Lucinda que, além de recomendar a instituição, também custeou sua estada na Europa. Ela, a avó, havia economizado, durante dez anos, os recursos financeiros para concretizar aquele sonho. Mila também comentou que desde daquela época mantém contato com o Departamento de Cursos da Academia que possui todos os seus livros que foram traduzidos para o inglês.
As duas estavam tão entretidas no assunto, a mãe falando e a filha em total silêncio escutando, que não tocaram no café nem nos biscoitos que Zara tanto gostava.
Enquanto ouvia Mila falar de sua vida de estudante em Londres, dos contatos pela internet e visitas da avó, Zara percebeu um brilho diferente nos olhos da mãe e por diversas vezes identificou em seu rosto um risinho de felicidade. Um riso breve, engolido de imediato, do tipo que as pessoas soltam quando se lembram de coisas boas, dos bons momentos da vida.
Então, naquele instante, a filha entendeu o porquê da “aflição” da mãe quando lhe telefonou. Ela precisava falar sobre a possibilidade de trabalhar em Londres. E, talvez, estivesse perguntando a si mesmo: Poderia ela, aos setenta anos, sair do Rio de Janeiro, onde vivia próximo dos filhos e dos netos, e reiniciar uma nova carreira em outro país? Teria ela o direito a essa escolha?
Zara sempre defendeu os argumentos de que a idade por si só não pode e não deve limitar a vida das pessoas, e que a felicidade do idoso está diretamente relacionada aos prazeres em desenvolver projetos de cunho pessoal, tais como viajar, ir ao teatro, ler, escrever e, muitas vezes, trabalhar.
Seguindo a sua linha de ver a vida, Zara, interrompendo a mãe que não parava de falar, disse:
— Mamãe! Não pense duas vezes. Aceite o convite imediatamente. Hoje praticamente não existem mais barreiras físicas nem linguísticas entre as nações. A senhora poderá manter este apartamento no Rio e alugar outro em Londres. Continuaremos nos falando e nos visitando, lógico com uma frequência menor. Mas nada muito diferente dos dias atuais. E tenho certeza que meu irmão também opinará pela sua ida.
Mila ouviu da filha o que queria ouvir. E com aquele sorriso no rosto, do tipo que as pessoas adotam quando estão vivendo momentos de felicidades, abraçou Zara e disse:
— Obrigada, querida.
E, em muito menos tempo do que há quarenta e cinco anos quando entrou pela primeira vez na Faber Academy, Mila, com ajuda de Zara, planejou e tomou todas as providências visando iniciar a sua nova fase na vida profissional. Em breve, estaria dando aulas na mesma Instituição que sua avó a sugeriu que fosse aluna.
Ela queria. E conseguiu alugar um apartamento no mesmo prédio que havia morado. Antes o seu endereço era “14 Saint Martins Close, apartment 102”. Agora só o apartamento mudaria para o número 105.
Dia da Despedida de Milena...
Ainda na parte da manhã daquele domingo de fevereiro, ela releu a programação de sua viagem, concluiu a arrumação das malas e do apartamento que ficaria fechado por um bom tempo.
Depois de um almoço na varanda, um cardápio leve com salada, legumes e peito de frango, Mila dirigiu-se ao escritório para rever alguns detalhes de sua aula inaugural para o curso “Como escrever um romance”, agendada para sexta-feira daquela semana.
Antes de chamar o táxi para conduzi-la ao terminal do Galeão, ela passou alguns minutos admirando a sua “casa de bonecas” que mantinha guardada em um armário especial no quarto onde lia e escrevia. Em seguida, caminhou até a sala. Esperou um minuto, dois minutos. Cinco. O relógio batia sua cadência, o seu tique-taque. O cuco apareceu. Ela colocou o dedo indicador da mão direita no bico do pássaro de madeira e disse: “adeus cuquinho, foi muito bom ter você ao meu lado todo esse tempo”.
Era uma noite quente. Mila, que havia acordado cedo naquele domingo e acertado os últimos detalhes da viagem, estava sentada numa das cadeiras de metal, não muito confortável, do hall de embarque do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro. Lia no seu smartphone a informação de que há dois dias a neve não dava trégua em Londres, e que naquele momento, às vinte e três horas e trinta e cinco minutos, duas horas a mais que no Rio, a temperatura no centro da cidade era de menos dois graus Celsius
Ao seu lado, todos em pé (não havia onde sentar), encontravam-se os filhos, Zara e André, os netos, Sofia e Misael, a nora Moema e a sua amiga Polina. Eles conversavam sobre a enorme quantidade de pessoas viajando e o desconforto no aeroporto
Com um olhar fixo no celular e a mente repleta de lembranças, Mila recordava os momentos maravilhosos vividos ao longo dos seus setenta anos e murmurava pra si mesma: “quarenta e cinco anos atrás eu estava neste aeroporto, ao lado da minha avó Lucinda para fazer a mesma viagem. Não há como comparar esses dois momentos mágicos. O tempo faz com que a ausência física das pessoas que amamos passe a ser uma normalidade no dia a dia, mas não as tornam substituíveis por outras em nossos corações. Não quero viver no passado nem nas expectativas futuras, quero viver o agora”. De repente ela ouviu aquela voz que a deixava encantada. O seu coração bateu um pouco mais rápido. Ela deixou de olhar o celular, levantou a cabeça e viu a sua frente Sofia e Misael, chamando-a. Os dois falavam ao mesmo tempo:
— Vovó, está na hora do avião. A mamãe disse que na semana da páscoa nós iremos à sua nova casa em Londres.
— Oi! Meus queridos. Está bem, é isso mesmo. A vovó estará esperando vocês para contar novas histórias.
Milena levantou-se e, antes de pegar a sua bagagem de mão, uma pequena bolsa de couro na qual sempre levava dois livros e um caderninho de anotações, despediu-se de todos com abraços calorosos e palavras de agradecimentos pelo apoio e incentivo.
Antes de sumir detrás das paredes de acesso ao setor de controle de passaportes, ela virou a cabeça e, com o seu já conhecido leve sorriso no rosto, aquele do tipo que as pessoas adotam quando estão vivendo momentos de felicidades, levou a mão direita aos lábios e simulou por gesto um beijo de despedida para seus familiares.
O Último Livro de Milena...
Seguindo a sua rotina de falar com a mãe por vídeo conversa, duas vezes por semana, naquela tarde de quinta-feira, quase um mês depois da viagem, Zara, devido aos últimos acontecimentos, estava ansiosa para fazer contato com Mila. Na manhã do dia anterior, havia lido uma nota publicada no caderno de literatura da “FOLHA DO RIO” elogiando o novo livro da autora Milena. E na tarde daquela mesma quarta-feira, foi surpreendida com a visita de Polina que, durante o café, lhe entregou um pacote com o logo da Libra Editora, com três exemplares do novo romance de sua mãe. Ao rasgar o papel do pequeno embrulho, teve a grata surpresa de ler na capa: “Amigas para sempre”. Com o livro na mão e demonstrando um ar de felicidade no rosto disse para ex-secretária de sua mãe:
— Nossa! Ela aceitou a minha sugestão para o título.
Zara constantemente ia até a sala de tevê de seu apartamento, olhava às horas no tablet, que já estava ligado e pronto na mesinha lateral aguardando a chamada de Mila, e resmungava baixinho: “hoje a hora não passa, ainda faltam vinte minutos para mamãe chamar”
Ao lado do tablet, estava um exemplar do livro e o recorte do jornal com a nota sobre o seu recente lançamento:
“Amigas para sempre”
“Mais uma primorosa obra literária de Mila Moutinho, uma das autoras brasileiras mais lidas e premiadas na última década. Em “Amigas para sempre”, Mila nos oferece uma história curta, sem grandes acontecimentos, calcada no cotidiano da vida. Mas com a sua capacidade extraordinária de criar personagens que emocionam os leitores, a autora nos conduz ao mundo maravilhoso da amizade entre duas mulheres extraordinárias, a neta e a avó.” O recente lançamento do livro ocorreu sem a costumaz sessão de autógrafos e entrevista concedida à imprensa. A Libra Editora está divulgando a obra como sendo o último livro de Mila, e justificou que a entrevista não aconteceu porque há cerca de um mês a autora está morando em Londres e se dedicando unicamente às suas novas tarefas de ministrar aulas na Faber Academy. Para confirmar a notícia de que Mila realmente deixou o Brasil, tentamos diversas vezes, em nome da redação deste jornal, ouvir um de seus filhos, mas nenhum dos dois retornou as nossas ligações.