A Quadratura do Círculo- cap. 29
Muitas vezes encontrava, ao sair, Poliedro; morava ali perto, quando não estava zanzando pelas ruas, com aquela velha senhora de que já falei. Ninguém lhe dava importância ou atenção, apenas eu reconhecia o gênio por entre aquelas esquisitices que tanto apreciava. O normal não me toca; sempre tive uma sensibilidade para aquilo que aos outros causa constrangimento. Havia ali, naquele rapaz a que ninguém dava um tostão, algo sublime e metafísico ou sei lá o quê que o destacava dos demais, mas que aos médicos só cabia dar remédios e mais remédios. Ah, se existissem esses tais em outras épocas e, Beethoven iria a um psicanalista e nunca teria escrito a Heroica e nem o Ode à alegria!
Nos últimos tempos ele andava agitado; ora descrevia um círculo, outra um quadrado em sua trajetória e, suas ideias e pensamentos refletiam isso; não consigo detalhá-los agora; era realmente muito preciso, o que nunca conseguiria com minhas palavras, apenas tentei reproduzir aqui. Agora, tentava reproduzir o símbolo matemático do infinito, com dois semicírculos; simplificando, como naquele autorama antigo em forma de esse. Eis que chegam perto deles dois indivíduos:
-Olá, vamos conversar um pouco- uma senhora de certa idade se dirige a ele.
-Não posso; agora estou descrevendo o infinito de infinitas formas , infinitensimalmente...
Nisso aparece outra pessoa, no caso um homem, um tanto troncudo e rude; já desconfiei do que se tratava. A velha senhora, a que cuidava dele, estava por perto.
-E se a gente desse uma volta naquele caminhão ali....Você me explicaria suas ideias no caminho.
Ele percebeu tudo num instante; não era estúpido, mas muito vivo:
-Nãããoo!- E ameaçou sair correndo; o homem troncudo ficou alerta; logo sacaria a seringa de injeção.
-Você vai ficar com eles; não posso mais com você; sou aposentada e mal dá para mim!- A velha senhora rebatia.
-Esperem!- Atalhei eu- Esse rapaz é mais esperto do que pensam; ele fala coisas interessantes comigo; acho que não o entendem...
-Não o entendem? Quem é você para saber? Mora com ele? Só o vê de vez em quando; eu é que tenho que lavar, passar, cozinhar; sua mãe nunca se interessou ;deixou-o comigo. Agora estou velha e a aposentadoria mal dá para minhas despesas; é fácil falar.
Ele ouvia tudo aquilo cabisbaixo, com os olhos entre as mãos, como se fosse um criminoso.
-Mas eu o entendo; ele é inteligente; tem um raciocínio lógico...
-Então quer ficar com ele? - Sua expressão se atenuara e mostrava uma esperança e alívio de se ver livre daquele embaraço. Por um momento a possibilidade disso passou pela minha mente; assim nascem todas as ações dignas e moralmente elevadas, seguido de um pensamento com as despesas, com o incômodo de alguém perturbando meu sossego; afinal, não tinha nada a ver com isso; por que fui me meter? Poliedro, que na verdade se chamava José da Silva Aragão, um nome comum, levantou levemente rosto , esboçou o sorriso, como um cãozinho que encontra um dono. Depois de segundos, respondi:
-Não posso...
A cara da senhora se fechou novamente; depois disse, seca, mas definitiva:
-Então não tem jeito; levem-no!
Ele se levantou como um raio, mas o homem era forte e o alcançou, dando-lhe a injeção; simples assim; o mundo resolve desse modo a situação daqueles indesejados.
Odiei a mim mesmo por um longo tempo; além de não ter mais as conversas malucas de Poliedro, sentia uma pinta de remorso que não me abandonava; era fácil ter pensamentos sublimes de como mudar o mundo, fazer versos bonitos, mas na hora da ação, na hora do vamos ver, como se diz por aí, a coisa é diferente; temos no íntimo o sentimento de sobrevivência e, por mais belas palavras bonitas que tenhamos na boca, somos como o chefe da manada que abandona o elefante ferido; não diferimos muito deles, embora escrevamos laudas e laudas de palavras vazias que se dizem pensamentos elevados. Sentia-me um calhorda, mas...tinha agido com sensatez.