LEMBRANÇAS DO AMIGO VIAJANTE*

(Em 09/08/2008...)

Sabê-lo ausente, por prazo indefinido, dava-me uma sensação de vazio, de saudades. Aquele agosto frio e lacrimoso, molhando aquela manhã cinza, plúmbea, expondo lágrimas represadas, mágoas sufocadas no inevitável. Entremeando o passado presente, nas tantas vivências, talvez mal vividas, mas experimentadas lado a lado. O ontem revisitado, qual filme antigo, se desenrolando em minha mente, trazendo lembranças, ferindo a sensibilidade, dores em soluços enaltecidos, sem disfarces, distância tão recente e já saudosa, suas palavras vivas relembradas. Como molha a água persistente nesta manhã atípica, triste. Embora debilitado, não se esperava o desfecho fatídico, só um aviso seco, lacônico e de morte. Fora de São Paulo para Natal, Rio Grande do Norte, tempos depois ficou adoentado, voltando em busca de recursos médicos melhores na capital paulista. No meio da noite se libertou, debandou outras paragens, caminho inescrutável a outros, individual; nos deixou pasmos e aterrados, mudos. Escorre na vidraça o respiro deste ar, embaça a visão e me deixa perplexo, apego-me à memória e o retenho presente, antes que o tempo desvaneça e apague da retina ofuscando lembranças queridas. Lamento a ida, inútil pranto. Embora convencido, efêmera ausência, rompo o dique, extravaso as tristezas, consolo nestes instantes tão íntimos. Até o reencontro, outras paragens, de muitas passagens testemunha, restam-me as saudades sinceras...

(Ano 2000...)

Fomos colegas de trabalho, amigos de botecos, companheiros em tantas oportunidades, até sócio em pequeno negócio por breve período. Mas ali nos encontrávamos, novamente em outra empreitada, além mar. Inimaginável os rumos que a nossa vida nos reserva. Através de um rapaz, negro imenso e simpático, nos contando as riquezas de sua terra natal, nos estertores da guerra civil, a me estimular o interesse, visando ampliar os horizontes. Daquele colóquio foi se estruturando um projeto, sedimentando o abstrato, dando formas aos desejos. Em seguida, no decorrer dos dias, entrosados, começamos a arquitetar nossos ideais. Iríamos ter em Angola, na sua capital, Luanda. Planos elaborados a quatro mentes, sem dinheiro para financiar as passagens, aéreas e caras, então uma única companhia, estatal, seguia direto ao destino, sem escalas. Dos quatro, apenas eu e um deles fomos no afã de prospectar o tal mercado promissor. A tarefa não era turística, levamos diversos produtos, poucas unidades de cada, visando demonstrar aos interessados angolenses. Hospedamos em um hotel, quarto com duas camas, U$ 100 a diária, com interrupções na energia elétrica a qualquer momento, movida que era por gerador.

A dotação restrita, dava para uma refeição, assim tomávamos café da manhã reforçado (já fazia parte da diária), depois almoçávamos em uma casa particular, indicação de um angolano que nos serviu de cicerone, interessado em também partilhar dos dividendos da empreitada. Ele nos apresentou um empresário, que se agrupou a nós, ajudando-nos a conhecer comerciantes locais. Pagávamos as refeições mas nada comparado aos preços de restaurantes. A noite disfarçávamos a fome como forma de economia. O meu parceiro não foi muito leal, pois, como controlador do caixa, fumava e bebia quando deveríamos restringir despesas. O nosso guia contatou diversas pessoas interessadas em fazer negócios com os estrangeiros (nós), então nos reuníamos no salão do hotel e expúnhamos os nossos produtos, atraindo a atenção de uma senhora, esposa de oficial militar, que chegou-se a nós com viatura oficial. Curiosamente as pessoas que falavam em negócios eram patenteadas na oficialidade angolana. Interessou-se em nosso produto chefe, a carne de charque. Ela compraria e levaria, através de pequenos aviões oficiais, às zonas de conflitos (estavam em guerra civil nas colônias mais distantes da capital), pelo que entendi a intenção era privada dela, nada com fins de governo, e sim negócios pessoais. Acertamos de que a mesma ficaria com seis mil quilos, a pagar na contra entrega. Não poderíamos exigir sinal, afinal não nos conheciam, teríamos como garantia a posse do produto até o recebimento do dinheiro. A venda era suficiente para pagar todas as despesas, restando, ainda, dezenove mil quilos de lucro, a ser comercializado. Excelente negócio. A imagem de filas de pessoas para adquirir alimentos, com dólares nas mãos, chamou-nos a atenção, e ambição. Aquilo avivou-nos as esperanças, e retornamos no afã de viabilizar a comercialização.

Longas tentativas de arrecadar recursos, junto a rentistas, amigos e parentes. Tínhamos vontade, apenas isso.

Depois de alguns meses, convencendo terceiros de nossas intenções e da viabilidade do negócio, nos comprometendo financeiramente com investidores, contatamos o frigorífico que acabaram confiantes no projeto. E, enfim, retornei junto com o amigo dessas lembranças, deixando para trás o primeiro acompanhante. O frigorífico mandou um de seus diretores nos acompanhar, também para eles era a primeira carga de exportação.

Estava no mar o cargueiro, e, dentre vários containers, um deles, de vinte e cinco mil quilos, dando realidade ao nosso sonho.

O pesadelo começou na chegada, na dificuldade burocrática de desembaraçar a mercadoria no cais, mediante injustificadas exigências e de propinas despropositadas. Percebi que até para informações havia custos, todos cobrando de todos, terrível impressão. Mal só menor que a desistência da compra encomendada pela esposa do oficial. A realidade econômica de Angola se alterara, também vítima à época de hiperinflação e de planos econômicos esdrúxulos tão conhecidos no Brasil.

Afinal, o que dera de errado ?, martelava a indagação. A resposta veio na mostra do produto com o selo na embalagem da carne “venda exclusiva para as forças armadas de Angola”, no mercado negro, sem impostos e taxas, a preços reduzidos, vendidos em feiras livres. A maior parte da população adquiria seus alimentos em barracas, mesmo as carnes, apesar da persistência de moscas sobre os produtos animais. Concorrência desleal vinda também de uma outra empresa brasileira, como a nossa, informações de que não dispúnhamos antes. O nosso acompanhante, enviado pelo frigorífico, retornou ao Brasil, dias depois de ficar conosco, desta vez em uma casa alugada pelo nosso contato, mais barata que a hospedagem em hotel, embora com a mesma precária energia elétrica, indo e vindo. Fervíamos a água para consumo próprio, como forma de prevenção às contaminações pela precariedade da falta de saneamento básico e que já tinha vitimada a maior parte da população, de impaludismo.

Desfeita a venda, restava-nos peregrinar com o nosso parceiro angolano pelo comércio local anunciando o nosso produto e dando o endereço de onde estava armazenada. Incapazes de vendas em lotes, restava-nos comercializar no varejo, era isso ou nada.

A permanência naquele ambiente dava sonolência involuntária, propiciada pelo mormaço escaldante refletido das telhas de amianto do galpão imenso. Na obscuridade chegava-se, tateando, ao sanitário, com a tímida luminosidade filtrada nas falhas do teto e dos vãos nas paredes. Um buraco no chão, onde se ficava de cócoras para as necessidades, tendo o zunido de enormes moscas aos ouvidos, no ambiente fétido de urina e fezes. Aquelas tardes ensolaradas e quentes, numa rotina interminável de esperar por compradores, dia após dia. Algumas kinguilas, mulheres que comercializam produtos como ambulantes, geralmente os transportando em cestos sobre as próprias cabeças, foram nos visitar, verificar a carne, algumas comentavam, para nosso desconforto, de que a data de vencimento estava próxima. Só então verificamos que não teríamos mais do que trinta e cinco dias, ou abaixaríamos os preços ou perderíamos tudo. Semi adormecidos pelo cansaço imposto pela alta temperatura naquele imenso salão, fomos advertidos pela presença de roedores, o que nos pôs em pane. Ratos nas embalagens de carne seria o que menos esperávamos. Auxiliados por funcionários que serviam naquele local, cuidamos de nos manter alertas e tomar algumas providências, mas o sossego havia acabado.

Quando saíamos às ruas, muitos acorriam aos estrangeiros brancos com as mãos estendidas em busca de esmolas ou vender alguma coisa; tinham partes dos corpos mutilados, em vestes de combate, vítimas de bombas enterradas, eram cenas normais que vivenciamos. Também uma curiosidade, o câmbio manual (troca de dinheiro) fazia-se ao ar livre, em guarda-sóis, onde via-se pilhas de kwanzas, a moeda local, e de dólares, sem nenhum sistema aparente de segurança. Angola tivera um histórico de dominação cubana, visível nos nomes das avenidas e ruas, reverenciando Trotsky, Guevara, Lênin e Karl Marx, revolucionários e pensadores comunistas.

As noites quentes, como os dias, tendo apenas um jogo de dominó para distração, além de livros e da televisão, quando a energia elétrica permitia. Difícil vencer a habilidade de meu parceiro no dominó, mente matemática. Tudo voltava em retrospectos, imagens que não dulcificam as lembranças, pelo malogro da empreitada, mas fortaleceram ainda mais os laços de solidariedade do amigo de quem agora me despedia...

Saudades !

Demiciano Antonio de Souza * 18/04/59 + 09/08/2008

* Publicado na antologia de contos MUITO MOINHO PARA POUCOS QUIXOTES, editora CBJE, Rio de Janeiro-RJ, janeiro de 2018.