As ciganas de Helguera

A busca pela cura da solidão, muitas vezes, estava escondida em bares sujos de fins de esquina – desova de cadáveres e despejo de lixão – em mesas descascadas da velhice dos seus patronos vitalícios, o salão era precariamente decorado. Uma banda, rejeitada num palco minúsculo, era protagonizada por músicos negros. O cantor com uma voz aveludada solfejava liras, odes e lamentos como se estivesse com a alma machucada, enquanto os seus pares, dolosamente, em elegias frias preenchiam aquela atmosfera cinzenta, poluída pela fumaça dos cigarros, charutos, haxixe e outros tabacos.

Postei-me no balcão, um pouco à espreita, aquilo era uma verdadeira espelunca. Pensei no que deveria pedir para beber... Pausei. Observei, nada tão amistoso na prateleira. Decidi, arranhando um inglês prudente, pedir uma cerveja, nada mais do que natural, começar com o simples. O “bartender” me perguntou qual marca, eu matutei e apontei para a mais bonita, a que tinha a garrafa verde. Provei-a, tinha um gosto forte, encorpada, um leve gosto de ferrugem, diferente das pilsners brasileiras, seu teor alcoólico era bastante elevado. Quando eu já passava da quinta, o garçom me trouxe um balde com gelo e mais quatro, pedi uma dose de tequila, também. Já morriam duas horas da manhã e a bateria do jazz continuava intermitente. Depois do show, eu já estava bem à vontade, comecei a matar de Chuck Berry à Doors na cinquentona jukebox que decorava um canto do bar. Num canto escuro do bar uma sombra taciturna me observava já havia um bom tempo.

Vem de lá uma morena volumosa, como as ciganas de Helguera, quebra a verve da última espinha que se sustentava em mim. Entendendo a situação, mas enxergando três portas, nove mesas e uma confusão de pernas, me parecendo mais com a capa do Sgt. Pepper's... peço um balde cheio d’água, mandam-me uma lixeira cheirando a vômito e a cigarro, esperando pelo refresco da água que iria me aliviar, peço então uma cerveja, subitamente, como uma bigorna, deixo cair aquele líquido dourado pelos meus cabelos, encontrando os cantos de meus lábios avisando ser despedidas horas aquelas últimas que restavam para mim ali. Procuro pela cigana, percebo o ambiente mais clarividente, todos ao meu redor, todos os mesmos miseráveis, vagabundos, ladrões, drogados, traficantes e alcoólatras que já se fazem parte da mobília daquele ambiente, que de tão peculiar, não me parecia estranho, pois estava tão acostumado em ver tantos cenários adaptados em filmes americanos como aquilo que se descobria diante de minha visão desgraçada e comprometida pelo rum e pela cerveja bebida como hidrato. Pena ela ter ido embora, fazer o quê? Quem sabe outro dia... Mas escuto um assobio forte e fino, cortante como navalha na carne, que alerta meu tímpano... não deu outra, sabia que era a cigana. Voltei sem querer parecer eufórico, mas transbordando em mares de felicidade de vê-la novamente. Ao me aproximar, ela me indaga: “Para onde estava indo? Não sabia que esperava por ti?” “Não, não sabia. Na verdade, eu não tinha ideia nem de quem eu era há poucos instantes, com a cara enfiada numa lata de lixo, tentando espremer o suco de laranja podre de minha vesícula biliar. Por sorte não me fizeram dar explicações para a polícia, pois o pandemônio que causei aí foi qualquer coisa de surto paranoico irremediável.” “Não te preocupas com a polícia não, nunca ninguém que anda aí haveria de chama-la, ambos, sabem o terreno em que pisam.

Agmar Raimundo
Enviado por Agmar Raimundo em 06/01/2017
Reeditado em 15/01/2017
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