DA JANELA*...

Desde de pequena se aninhava naquele canto, aconchegada com o negrinho, seu gato, parecendo viajar para além dos limites visíveis daquele janelão. Era ali o seu refúgio, onde observava as mudanças do tempo, o sol brando das manhãs aquecendo seu rosto, ou nas vespertinas horas, os arrebóis desenhando figuras nas nuvens, no ocaso do astro rei, ocultando-se no prenúncio das noites, onde estrelas despontavam no manto celeste. Ou ainda, no período chuvoso, as gotas sôfregas batendo nos vidros, levantando do solo ressequido a poeira do chão, olores próprios de água e de mato, sensíveis e agradáveis aos olfatos, coriscando o céu com raios magníficos e terríficos ao mesmo tempo. Testemunha do panorama avistado, assistindo as transformações daqueles ermos, acompanhando a vida pacífica e rotineira a se desfraldar lentamente; um dia, como tudo na vida, seu companheiro de pelos foi-se, a deixando entristecida, diante às fatalidades inevitáveis, na tenra idade o felino querido, na maturidade a despedida dos pais...

Confundia-se ao avistar as estripulias dos estudantes que retornavam da escola rural, em ebulição, exuberantes como são as crianças em suas manifestações, onde ela também figurou em sua infância, com sua saia plissada, e os cabelos presos em laçarotes. Parecia enxergar-se menina a correr com os colegas, no correr do tempo que tudo transforma em reminiscências. Os casamentos em domingos de festas, replicando os sinos da igreja matriz, os falatórios das mulheres, os senhores e seus cavalos e charretes, os pequenos no átrio a correrem em seus folguedos e gargalhadas. Como fora o seu consórcio com Ambrósio, homem bom, trabalhador, meio bronco mas fiel, e, como dizem, tudo que é bom morre logo, foi-se depois de quinze anos de harmoniosa convivência, não tendo filhos, dele restaram as lembranças e uma foto de casal em cima de uma cristaleira, além dos raros motivos para deixar sua casa, em visita ao cemitério...Como todos os romances naqueles sítios, conheceram-se em uma quermesse da igreja, olharam-se cumpliciados, as mãos toscas e calosas do agricultor segurando as suas, macias, de professora primária. Descobriram-se, sendo ela a sua primeira experiência como macho, e a dela como fêmea, quebraram todos os tabus entre as quatro paredes de suas intimidades, o que arrancava suspiros saudosos à viúva. Nem parecia que uma circunstância trivial na vida roceira levaria o companheiro, picado por uma cobra cascavel na lida com a terra, socorro tardio com o soro antiofídico. Os pais falecidos, sem irmãos, a deixaram habitante única naquele teto de tantas lembranças, nas paredes que rescendiam as memórias de seus ocupantes, em seus passos lentos a percorrer cada cômodo.

Aposentada, entretinha-se na confecção de roupas de recém-nascidos das obras assistenciais da paróquia, tecendo mantas, gorros e outras indumentárias com suas agulhas de tricotar. Devota de Santa Rita de Cássia, desde que recebera um santinho com a figura da canonizada e lera sua história, ainda menina. Dedicava-se às novenas promovidas, principalmente as da via sacra, com suas quatorze estações de dores, onde o terço era rezado em contrição diante aos suplícios do Mártir. Por acaso viu-se detentora de uma faculdade, a de benzer, o que fazia com reservas temendo reprimendas do padre. Diante a um dos inúmeros afilhados, tiritando de febre, o segurou nos braços, e, sem saber o que fazer para minorar sua temperatura, orou. O certo é que o pequeno, já prostrado, aquietou-se, dormindo um sono suave e acordando bem. Bastou para o fato correr, de boca em boca, e passar a ser procurada por mães aflitas com seus rebentos enfermiços.

Parecia-lhe estranho que em algum lugar, em notícias vindas da televisão e do rádio, cientistas falando sobre a lua como astro sideral, ali parecia uma deusa, venerada como uma entidade divina em suas várias fases, responsável pelo sucesso da lavoura, do nascimento dos bebês, do resultado das pescarias. Tudo bucólico, distante, um pedaço esquecido, antigo, em um contexto em que o mundo se modernizava alhures, longe daquelas paragens. Daquela torre de vigília, como a si mesma dizia, tinha a sensação de onipotência e onisciência, rindo e se penitenciando dos assuntos, conforme fossem os ocorridos. Alegrias para os casórios e batizados, pesar pelos falecimentos, sempre de conhecidos, por ser lugar pequeno, uma extensão da família. O luto, quando ocorria, deixava ainda mais silencioso o lugarejo, que de si já era discreto, a compadecer a todos os viventes atingidos, a consternação era coletiva, sinalizada pelas badaladas pausadas do sino da paróquia. O aviso vinha pelo serviço de som, antecedido pela música fúnebre, o toque de silêncio, dando breves informes sobre o féretro a ser velado. Daquele canto do janelão tinha-se a sensação de testemunha ocular do que se avistava, sendo a casa localizada em lugar alto, de ampla visão. De parcas possibilidades de distração não era de todo incomum ficar à espreita naquele canto da espaçosa sala, avistando o horizonte e reportando a vida alheia. Naquele dia, todavia, ela lá não estava de prontidão fazendo sua crônica mental diária como de costume, avultava como a personagem anunciada no alto falante sendo venerada em cortejo.

A vizinha a encontrou recostada na cadeira de balanço, junto à janela, com seus novelos de lã e as agulhas de tricô, parecia dormir placidamente, para sempre, talvez indo ao encontro de seu saudoso matuto...

***Publicado em livro na antologia de contos de verão 2017, editora CBJE, Rio de Janeiro-RJ.