Linha Ferrea
Em Barbacena a linha férrea, bitola estreita, da Oeste Mineira, entrecortava a cidade por muitos quilômetros. Todos os dias o trem partia às cinco horas, com destino a São João Del Rei e retornava às dezessete horas. Boa parte do dia, a linha ficava inativa.Eu morava na Rua do Campo, atual, Rua Saldanha Marinho, minha casa era um enorme sobrado, ficava no alto, próxima ao túnel. De lá, eu podia ver o túnel, a passagem do trem e boa parte da linha, diga-se de passagem, muito bem cuidada. Era margeada por enormes touceiras de capim limão e por pés de ipê que, em época de floração, fazia bem à vista e ao olfato.
Sempre que solicitado pelos meus pais para fazer um pequeno trabalho, lá ia eu, às vezes correndo, às vezes caminhando, porém feliz da vida, pela linha do trem. Existiam ruas calçadas, com bons passeios, mas não era o que eu gostava, minha predileção era a linha do trem. Em minha opinião, o único risco que eu corria não era ser atropelado pelo trem e sim ser morto, ter a cabeça decepada pelo Candim Lelê. Ele tinha fama de louco, todos o temiam, era pardo, magro, média estatura, cabeça raspada, barba tipo monge, roupas molambentas e cara de mau. Aparentava idade próxima de 40 anos. Andava com um enorme feixe de capim nas costas e uma foice afiada, com espessura de um palmo na lamina. Os mais otimistas diziam que o capim era para suas criações, mas ninguém sabia onde ele morava. Eu o via constantemente em vários lugares, seguindo em direção dos inúmeros bairros que compunham a cidade. Envergado, com aquele descomunal feixe de capim nas costas, chegando mesmo a arrastar o chão e com aquela grande e afiadíssima foice, e eu tirava minhas conclusões: “Se o capim é para suas criações, porque ele não segue em direção ao mesmo bairro? Não, ele anda por todos os lugares em busca de crianças para matar!”. Quando o encontrava na cidade eu mudava de passeio e o problema estava resolvido. Na linha do trem, eu voltava em desabalada carreira, tinha medo, muito medo.
Certo dia, no final da tarde, minha mãe pediu para que eu fosse até a casa de Dona Clarita, nossa costureira, retirar uma sacola contendo costuras. Em poucos minutos eu já estava retornando. Quando eu estava no início do túnel, ouvi o apito do trem. Encostei-me na parede do túnel, o trenzinho passou bufando, soltando fumaça para todo lado. Em seguida, em meio àquela fumaceira, eu vi um vulto no meio da linha, bem próximo de mim. Um arrepio estremeceu meu corpo, minhas pernas ficaram bambas. Era ele, estava sem o feixe de capim. Não adiantava correr, ele me pegaria com facilidade. Fiquei aterrorizado, senti que minha vida estava à mercê da foice. Ele percebeu minha aflição, mas não se ateve que ele era o causador. Com a voz calma, perguntou-me: “Ocê mora donde?”. Eu, sem ação, praticamente sem fala, respirei fundo e, com o dedo indicador, apontei em direção ao teto do túnel. Na verdade, queria dizer que era na Rua Saldanha Marinho, entrecortada pelo túnel. Ele meio bravo perguntou-me: “Ocê é morcego?”. Eu, sem entender aquela situação, balancei a cabeça em sinal negativo. Ele, um pouco mais bravo, me interpela: “Ocê num tem língua?”. Mais uma vez, balancei a cabeça em sinal afirmativo, querendo dizer que tinha. Ele irritado saiu apressadamente, resmungando: “Eu ainda tenho trabaio pra fazê, num posso ficá perdendo tempo com criança senducação!”. Seguiu seu caminho em direção oposto ao meu. Para mim, foi um alívio, renasci.
Corri para casa e lá cheguei esbaforido e assustado. Lembro bem, minha mãe indagou: “O que houve? Parece que viu a onça!”. Entreguei-lhe a sacola com as costuras, seguido de um abraço apertado, entre beijos e falei: “Hoje eu estou feliz!”. Daquele dia em diante, não mais andei pela linha do trem e, nos dias de catecismo, enquanto aguardava a mestra catequista, Dona Zola, passei a pedir a Deus ajuda e proteção para o Candim Lelê, homem bom, que eu julgava ser mau.