935-SALSICHA-Série Palavras evocativas
Como pode uma simples e corriqueira palavra – salsicha – suscitar tantas memórias?
Lembro-me bem do pacote de salsichas que mamãe comprou na feira-livre e me entregou, no quarto da pensão, dizendo: “Tome, Tonico, mata sua vontade de comer salsichas”.
Fora do contexto, esta lembrança não faz sentido; devo narrar os acontecidos desde o início, para chegar a este ponto.
Aconteceu quando eu estava com oito anos, cursando o segundo ano do curso primário, no ano de 1944 e mamãe fez uma viagem a Campinas, grande cidade próxima a São Paulo. A finalidade foi consultar um oftalmologista no famoso Instituto Penido Burnier, naquela época um centro avançado de oftalmologia.
Não querendo viajar sozinha, Mamãe decidiu me levar em sua companhia, embora, para tanto eu devesse faltar às aulas durante uma semana. Dona Marocas, minha professora, autorizou a minha ausência, conquanto que depois eu estudasse com algum colega tudo o que tivesse sido ensinado naquele período.
Lá fomos nós, pelo “Expresso” da Mogiana, trem de ferro que ligava o sudoeste de Minas à importante cidade paulista. Um dia inteiro de viagem no vagão se segunda classe, com fagulhas expelidas pela locomotiva entrando pelas janelas e aderindo, queimando, as roupas e peles dos viajantes. Quem podia ou viajava constantemente usava guarda-pó, a fim de evitar que a roupa fosse perfurada.
Após cada parada nas estações, quando embarcavam e desembarcavam passageiros, passava o fiscal do trem, com a maquininha picotando as passagens, fiscalizando se não havia algum clandestino. Ao final de uma viagem longa como a que estávamos fazendo, a passagem era só buraquinhos, tantas vezes tinha sido picotada pelo fiscal.
Chegamos à tarde, por volta das cinco horas e tomamos um “carro de praça” que nos levou rapidamente à pensão de dona Mariquinha, na qual se hospedavam principalmente paraisenses (nascidos em São Sebastião do Paraíso) que iam a Campinas por diversos motivos.
A consulta de mamãe já estava marcada para o dia seguinte à tarde. Pela manhã, bem cedo, mamãe acompanhou dona Marquinha à feira-livre, que acontecia ali por perto. Atravessamos um grande jardim com muitas palmeiras imperiais.
Na feira, um mundo de artigos à venda que me deixou meio tonto. Ou talvez amedrontado. Mas logo fiquei esperto ao ver um local onde eram vendidos salames, salaminhos, salsichas e coisas do gênero.
Esquecia-me de contar que eu era louco por salsichas e em Paraíso só se encontrava salsichas em lata, da marca Swift, caras prá chuchu. Então, ao ver aquelas tiras de salsichas dependuradas, empilhadas amontoadas — empaquei. O dono da banca, astutamente, me ofereceu um pedacinho num palito, para experimentar.
Puxa Vida! Que gostosura! A salsicha era macia e desmanchou-se na minha boca. Demorei na mastigação, tentando manter o prazer daquele sabor na boca.
Mamãe puxou-me pela mão, mas fiquei firme. Ela me olhou com rigor, mas logo entendeu que eu estava “vidrado” nas salsichas.
— Compra prá mim, compra, mãe!
Então mamãe, num arroubo de amor, pediu ao dono da barraca:
— Pesa meio quilo dessa salsicha que o senhor deu pro meu filho experimentar.
<><>><>
Na volta da feira-livre, as sacolas pesadas nas mãos de Dona Mariquinha e de mamãe, eu caminhava ligeiro, adivinhando que pelo menos uma ou duas salsichas mamãe me deixaria comer.
Ao entrarmos na pensão, passamos pela sala principal, uma linda moça estava sentada a uma mesa, lendo um livro. Ao nos ver, veio ajudar nas sacolas, ao mesmo tempo em que, com um sorriso maravilhoso, abraçou mamãe, exclamando:
— Dona Mariinha! Como vai! Há quanto tempo...!
Minha mãe largou as sacolas no chão e abraçou a moça.
— Isolina! Que bom ver você!
E depois desembaraçarem os braços, mamãe prosseguiu:
— Como cresceu! Está uma linda moça!
Era a filha de dona Mariquinha, eu não sabia. Bonita: risonha, olhos escuros, bem como longos cabelos ondulados cascateando pelos ombros. Fiquei mais abestalhado do que havia ficado na barraca de salsichas.
— E você? — Abaixou-se e aproximou seu rosto perfumado. — Você é o... deixe-me ver... Ah! Você é o Toniquinho!
Sem esperar resposta (mesmo porque eu estava mudo e paralisado) ela foi me abraçando e me beijando no rosto.
Nossa Senhora! Que coisa maravilhosa senti, apesar do acanhamento. Seus cabelos roçaram meu nariz, o rosto, o pescoço, e eu ali, estatelado.
— É a Isolina, filho. Abraça ela. Você não se lembra...?
Abracei-a sem jeito. Devia estar vermelho de vergonha.
Enfim, subimos as escadas para o segundo andar, onde ficavam os quartos. Sentei-me na cama ainda zonzo pelo abraço e pelo beijo recebidos de Isolina. Mamãe quebrou o encanto, colocando o embrulho de salsichas em minhas mãos, dizendo:
— Pronto, filho, pode comer quantas salsichas quiser.
— Salsichas...Ah! as salsichas...
Mas que salsicha, que nada! Meu pensamento, naquele momento, era só para a linda Isolina.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 1 de dezembro de 2015.
Conto # 935 da Série 1.OOO HISTÓRIAS