Pode beijar, se quiser

No mormaço de novembro chuvoso, o teto de zinco do ponto de ônibus ressaltava minha malemolência. A fumaça deletéria do cigarro enovelava-se ao redor do meu rosto. Mesmo assim, notei aquela forma suave adentrar o meu raio de visão.

-Moço, você troca um cigarro Fox por um cigarro Free?

-Sim, mas porque você quer trocar um contrabandeado por um nacional?

-Eu gosto do gosto amargo do cigarro paraguaio. O que você vai fazer mais tarde?

-Vou dormir.

-E menos tarde?

-Vou estudar.

-Hum! Que chique! Se quiser se divertir esse é meu número.

Depois de duas páginas de Karl May e meia página de Kardec, os classificados do jornal com suas acompanhantes me parecem excelente literatura. De repente, me lembrei dela.

-Alô!

-Alô!

-Agora que desci a Calógeras, como te encontro?

-Duas casas depois do Posto de Gasolina. Vou estar no portão.

Uma casinha amarela reformada. Cercada de edifícios em construção e alguns prédios comerciais. Assemelha-se a um girassol entre arbustos.

-Oi.

-Olá! Vem! Cuidado com o cão.

É tão excitante a forma como ela me puxa pelo dedo médio com sua mão de brasa líquida. Quase não consigo chegar inteiro no final da calçada de ladrilhos esverdeados.

-Entra! Bebe alguma coisa?

-Cachaça.

-De alambique?

-Não, de boteco.

-Quer experimentar um uísque?

-Não, pinga mesmo.

Após um rápido gole e uma longa tragada, calmamente ela despe a camiseta e sugere que eu retire sua bermuda rota e cheirosa. Estou suplicante de desejo quando ela se deita, despeja um pouco de cachaça sobre o umbigo fundo e pede que eu beba.

-Como você gosta?

-De todo jeito.

-Assim?

-Isso!!

-E assim? Quer mais?

-Também! Sempre!

Na parede verde-oliva uma fotografia de dois idosos. Poderia ser o pai e a mãe ou apenas o casal que aluga a casinha. No corpo dela um cheiro fugaz de inocência. Debaixo da cama havia alguns invólucros de preservativos e um par de meias cor- de- rosa.

-Você deixa beijar?

-Às vezes, sim.

-Hoje é a vez?

-É.

Cambaleante, vou até o banheiro. Na volta, esbarro em uma estante. Derrubo dois livros: Marquês de Sade e Anais Nin. Gostaria de lê-los qualquer dia.

-Quanto te devo?

-Cem reais.

-Aceita em trocados miúdos?

-Claro!

-Toma. Dez notas de dez.

Visto minhas roupas amarfanhadas, úmidas e impregnadas do aroma dela. Tomo dois goles seguidos enquanto ela fuma recostada no sofá.

-Até.

-Até.

-Antes de ir, me dá mais um cigarro contrabandeado.

-Pode ficar com o maço.

Na saída faz questão de me acompanhar. Passamos pela calçada de ladrilhos e pelo cão, que ela diz se chamar Miller. Olho pela primeira vez o castanho taciturno de seus grandes olhos e beijo suas unhas curtas de trabalhadora. Abro o portão, digo adeus e me vou. Antes de dobrar a esquina pude vê-la, de joelhos, abraçada ao labrador que lambe o seu rosto com ternura.

make
Enviado por make em 14/12/2016
Reeditado em 03/11/2017
Código do texto: T5853015
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