931-0 VELÓRIO CONTINUA

O VELÓRIO CONTINUA

Imagine o leitor a seguinte situação: você acorda de um sono cataléptico (estado de rigidez muscular que se confunde com a morte) e abre os olhos. Vê apenas o teto branco, indefinido. Sente o cheiro forte de velas se queimando e flores murchas. Ouve um ruído confuso de vozes. Tenta se virar e não consegue, pois se encontra estirado dentro de um caixão. Procura se levantar e com muita dificuldade consegue sentar-se. E vê que está num velório. O próprio velório.

Com toda a certeza, levará um baita susto.

Pois foi o que aconteceu com dona Ubaldina.

Padecera a vida inteira de catalepsia, com acessos terríveis que a colocavam em estado de rigidez cadavérica por alguns minutos, até que fosse socorrida e voltasse do acesso. Por fim, um ataque fortíssimo, aos sessenta e dois anos, a levara de vez.

Tarde quente e abafada no cemitério municipal de Ventania. Muito conhecida, o velório fervia de gente. Cegou o padre Clementino para celebrar a missa de corpo presente, última homenagem antes de ser levada à cova.

No trecho da missa em que todos cantam ”Aleluia! Aleluia! Nossa irmã está agora no aconchego do Senhor”, eis que Dona Ubaldina se ergueu. Segurando com as mãos magras as bordas do caixão, o véu que lhe cobria a face escorrendo para a cintura, amassando flores que espalhadas por sobre o peito, ela se aprumou. E emitiu um suspiro cavernoso.

Aconteceu, como seria natural, um grande rebuliço. O padre que estava, como todos os fiéis, de mãos para o alto, abaixou-as abruptamente e empalideceu de terror. Correria.

Dona Ubaldina também estava assustada. Não é para menos. Tentou sair do caixão. Ninguém se aproximou para ajudá-la, pois até os filhos, a filha e parentes debandaram.

Com dificuldade, tentou diversas vezes e por diversos modos sair do caixão. Chegou até a atravessar uma fina perna sobre um lado do caixão.

O padre, acostumado com as estranhas manifestações espirituais e para-espirituais (seja lá o que isso signifique) ficou firme. Se não ajudou dona Ubaldina, também não atrapalhou nas tentativas de sair do caixão.

Não conseguiu. Então, como que resignada, deita-se novamente. Ali permaneceu, as flores do caixão espalhadas por sobre o corpo, uma vela caída no atropelo do pessoal em fuga, sussurros e suspiros de todos os lados.

O medo do sobrenatural acontecendo ali, no velório da pacata cidade, dominou todas as pessoas. Ninguém sabia o que fazer.

Dona Ubaldina deitada no caixão. Olhos abertos. Hirta. Silenciosa.

Teria voltado ao estado de catalepsia? Ou realmente batera as botas deveras?

Um senhor alto, calvo, óculos na face aparentemente tranqüila, pediu licença entre a multidão e se aproximou do caixão. Como num filme surrealista, traz uma maleta da qual tira o estetoscópio e passou a examinar a mulher, que ninguém sabia se estava morta ou viva. Auscultou, apalpou, enfiou uma agulha no braço da mulher que não reagiu a nenhum incentivo.

Com toda a certeza, ao deparar-se participando como defunta do próprio velório, o susto ou o estresse foram tão fortes que ela não resistiu: morreu de susto.

Agora está morta de verdade, cochichou o médico ao padre, que acompanhava de perto todo o exame pós-morte.

Virando-se para a multidão que se espremia na porta do velório, fazendo o sinal da cruz, o padre disse em alto e bom tom:

— Podem voltar, irmãos e irmãs! Agora ela está morta de verdade! In nomine Patris et Filii et Spirictus Sancti, O VELÓRIO CONTINUA!

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 28 de fevereiro de 2016.

Conto # 941 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS.

Inspirado em notícia de fato ocorrido em Belo Horizonte em janeiro de 2016.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 12/12/2016
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