O GATO MIMI
Era uma casa antiga, da época dos senhores de engenhos. Tinha um peitoril lindo, com alguns detalhes da arquitetura barroca. Uma escada central que se abria em ípsilon abraçando a fonte a sua frente. Era o charme da entrada daquele casarão. Anjos gordinhos lançando jatos de água davam o clima celestial ao lugar. Ali o trabalho era árduo e em tempos de colheitas a presença de trabalhadores temporários aumentava muito a agitação da fazenda.
Ao lado daquele lindo sobrado, era logo notado um grandioso silo de três andares. Ali ficavam armazenados não somente as centenas de sacos de café. Mas, também, toda a colheita de milho, feijão e cacau. Como era se esperar naquele ambiente de grãos e de cheiro forte de cereais por mais que se limpasse, e isto era feito e muito bem feito, existiam ratos. Existiam muitos ratos. O estrago era grande, frequentemente muitos sacos eram furados e grãos perdidos eram vistos por todos os lugares. Ratoeiras, venenos em grânulos, em pó e às vezes em iscas eram espalhados pelos pisos. Mas, mesmo assim os ratos se multiplicavam e ignoravam as medidas tomadas.
Antônio, homem forte e decidido era o responsável pelo cuidado do lugar. Depois de tanto tentar combater a população de ratos, sentia-se derrotado, cansado. Ele bem sabia que já tinha tentado de tudo e nada tinha resolvido aquela situação. Sabia também que o prejuízo vinha crescendo e que em algum momento o coronel Ezequiel iria saber dos fatos e aí então a sua reputação de empregado zeloso e responsável iria ruir. E tudo por causa daqueles ratos. No desespero da sua empreitada, de repente lhe ocorreu uma idéia que parecia boa, mas talvez impossível de resolver a infestação. Seu pensamento voltou para o seu gato de estimação.
Mimi era um gato já velho, cheio de manias. Todo o cuidado que recebeu desde que chegou à casa de Antônio, quando ainda era recém-nascido o fez inexperiente para caçar ratos. Por mais que Antônio se esforçasse ele não se lembrava de nem um momento que seu gato já tivesse matado um rato. E o instante não era habitual, tratava-se de um exército de ratos espertos, bem nutridos e muito bem escondidos. Aquela seria uma missão impossível para um gato que dormia a maior parte do tempo. Que recebia alimento sem nenhum esforço por mais de sete anos. Mimi era diferente, ele já fazia parte da família e assim era tratado.
Como última tentativa Antônio levou Mimi para o depósito. Colocado no chão, do lugar ele nem saiu. Desconfiado e com medo ele se encolheu e procurou proteção na bota de Antônio. O sentimento de Antônio estava dividido. Era de compaixão e cuidado, mas também de incompreensão. Como um gato poderia deixar de ser gato? Poderia o seu instinto ter desaparecido? Depois de ter devotado tanto cuidado, ele bem poderia retribuir ajudando-o naquela missão. Gratidão era o mínimo que ele esperava. O dia inteiro o gato ficou encolhido num cantinho demonstrando a sua inadequação ao novo ambiente. Era o último recurso de Antônio e a esperança não lhe abandonaria agora. A tarde passou rápida. Chegando a noite Antônio tomou a decisão, mesmo doendo em seu coração, que Mimi ficaria por ali naquela noite.
Mal a escuridão chegou e os ruídos já demonstravam que a cena da noite se repetiria. Ratos saindo se suas tocas, deixando seus esconderijos e começando a exercer suas necessidades: roer. A busca pela alimentação farta e fácil se fazia de maneira simples e direta. Saíam sem medo e roíam. Diante daquele cenário o gato continuava inerte. É como se nada daquilo lhe falasse alguma coisa. A realidade em sua volta era tão nova que ele não entendia. Sentia-se abandonado na noite, na escuridão. Sentia falta do leite morno e do seu cantinho com panos macios e quentes. Sentia falta da presença de pessoas. Era a ausência do carinho e dos cuidados que lhe incomodava. Mas algo começava a acontecer. Aquele abandono provocava nele algo diferente. A sua natureza intrínseca começava a acordar. A sua essência aos poucos ia aceitando aquela realidade. A presença dos ratos e o abandono da noite fortaleciam o inevitável despertar da sua alma. A dureza daquela experiência resgatava o gato esquecido pelas facilidades recebidas. Mimi sentia que precisava ser gato. Este poder precisava ser vivido, era a sua razão de existir. Ser gato. Agir como gato. Precisava começar a caçar. Mais do que um desejo, era a sua necessidade que gritava. Ele estava com fome.
Aos poucos Mimi ouvia pela primeira vez um miado de uma gata. Aquele som agudo, melodioso e carnal jamais ouvido fez despertar nele algo diferente. Sentimento de desejo e medo. Aquilo soava como um convite:
- Venha passear aqui em cima. Aqui fora, no alto do telhado. Venha ser livre! Não tenha medo o telhado é o nosso destino. – essa era a mensagem que Mimi recebia da gata lá fora. Miloca era uma gata livre, acostumada a caçar, a sair para noite, se divertir, a viver como uma gata. Aquilo assustava Mimi. Apesar de ser mais jovem, mas tudo que ela tinha vivido e foram muitas as aventuras, o encantava. Fazia-o sentir o quanto a sua vida tinha sido limitada, mesmo sendo uma boa vida. Mimi sentiu pela primeira vez o amor, o desejo e a sedução. Naquela noite ele pode ousar, ser feliz e fazer Miloca feliz. O céu era o limite e o amanhã uma incógnita. Talvez uma dádiva para os gatos que livres e corajosamente passeiam sobre os telhados.
Já dentro do depósito Mimi aos poucos foi percebendo os ruídos e os movimentos no ambiente. Aquela movimentação vinha de toda parte, de cima, de longe, do lado e de perto. Como uma fagulha que percorre o pavio até a explosão final, o instinto adormecido por anos foi se acendendo. Em poucos minutos ele começava a exercer a sua natureza de gato. Sem pressa e com a precisão de um exímio caçador ele foi matando dezenas de ratos. Outros tantos fugiram e se mantiveram escondidos por toda a noite.
O dia novamente acontecia e nos seus primeiros raios Antônio já estava de pé. Naquela manhã não era somente o dever da labuta que o chamava, ele estava ansioso para saber como estava o seu gato. No fundo ele tinha dúvida da capacidade de Mimi. Tinha medo que algo de ruim tivesse acontecido. Ele nem conseguiu dormir à noite. Ficava pensando em cobras, raposas, corujas, cães e tudo mais que a noite poderia guardar. Ele sabia que Mimi era um gato inexperiente e essa ideia o atormentou a todo instante. Quando abriu as portas do depósito, não conseguiu acreditar no que viu. Dezenas de ratos mortos! Alguns totalmente sem vida, outros ainda agonizando. A limpeza tinha sido total - imaginara ele. Mimi tinha feito um excelente trabalho, tinha conseguido. A alegria que ele sentia agora era enorme, quase paternal. Toda a sua dedicação tinha um sentido agora. Depois daquele momento de intensa alegria e surpresa ele começou a procurá-lo. Sabia que ele estaria dormindo em algum local do depósito. Era um descanso merecido, que só os verdadeiros heróis podem ter. Passaram-se duas horas, ele já tinha olhado em todos os lugares possíveis e nada de encontrar Mimi. Aquela ausência o torturava, sentia-se culpado. Sua consciência não ficaria mais em paz.
Nos dias seguintes sempre voltava ao depósito na esperança de tê-lo de volta. Mas só encontrava mais ratos mortos. Era o sinal que Mimi estivera por ali. Às vezes na escuridão da noite ele tinha a impressão que o via sobre os telhados e sempre na companhia de outro gato(a). E os ratos continuaram a ser mortos dia após dia. Talvez o seu gato de estimação não quisesse mais abrir mão da sua vida de gato livre. Escolheu ser livre, buscando nas noites a sua razão de existir. Agora os telhados era o limite para Mimi.
Era uma casa antiga, da época dos senhores de engenhos. Tinha um peitoril lindo, com alguns detalhes da arquitetura barroca. Uma escada central que se abria em ípsilon abraçando a fonte a sua frente. Era o charme da entrada daquele casarão. Anjos gordinhos lançando jatos de água davam o clima celestial ao lugar. Ali o trabalho era árduo e em tempos de colheitas a presença de trabalhadores temporários aumentava muito a agitação da fazenda.
Ao lado daquele lindo sobrado, era logo notado um grandioso silo de três andares. Ali ficavam armazenados não somente as centenas de sacos de café. Mas, também, toda a colheita de milho, feijão e cacau. Como era se esperar naquele ambiente de grãos e de cheiro forte de cereais por mais que se limpasse, e isto era feito e muito bem feito, existiam ratos. Existiam muitos ratos. O estrago era grande, frequentemente muitos sacos eram furados e grãos perdidos eram vistos por todos os lugares. Ratoeiras, venenos em grânulos, em pó e às vezes em iscas eram espalhados pelos pisos. Mas, mesmo assim os ratos se multiplicavam e ignoravam as medidas tomadas.
Antônio, homem forte e decidido era o responsável pelo cuidado do lugar. Depois de tanto tentar combater a população de ratos, sentia-se derrotado, cansado. Ele bem sabia que já tinha tentado de tudo e nada tinha resolvido aquela situação. Sabia também que o prejuízo vinha crescendo e que em algum momento o coronel Ezequiel iria saber dos fatos e aí então a sua reputação de empregado zeloso e responsável iria ruir. E tudo por causa daqueles ratos. No desespero da sua empreitada, de repente lhe ocorreu uma idéia que parecia boa, mas talvez impossível de resolver a infestação. Seu pensamento voltou para o seu gato de estimação.
Mimi era um gato já velho, cheio de manias. Todo o cuidado que recebeu desde que chegou à casa de Antônio, quando ainda era recém-nascido o fez inexperiente para caçar ratos. Por mais que Antônio se esforçasse ele não se lembrava de nem um momento que seu gato já tivesse matado um rato. E o instante não era habitual, tratava-se de um exército de ratos espertos, bem nutridos e muito bem escondidos. Aquela seria uma missão impossível para um gato que dormia a maior parte do tempo. Que recebia alimento sem nenhum esforço por mais de sete anos. Mimi era diferente, ele já fazia parte da família e assim era tratado.
Como última tentativa Antônio levou Mimi para o depósito. Colocado no chão, do lugar ele nem saiu. Desconfiado e com medo ele se encolheu e procurou proteção na bota de Antônio. O sentimento de Antônio estava dividido. Era de compaixão e cuidado, mas também de incompreensão. Como um gato poderia deixar de ser gato? Poderia o seu instinto ter desaparecido? Depois de ter devotado tanto cuidado, ele bem poderia retribuir ajudando-o naquela missão. Gratidão era o mínimo que ele esperava. O dia inteiro o gato ficou encolhido num cantinho demonstrando a sua inadequação ao novo ambiente. Era o último recurso de Antônio e a esperança não lhe abandonaria agora. A tarde passou rápida. Chegando a noite Antônio tomou a decisão, mesmo doendo em seu coração, que Mimi ficaria por ali naquela noite.
Mal a escuridão chegou e os ruídos já demonstravam que a cena da noite se repetiria. Ratos saindo se suas tocas, deixando seus esconderijos e começando a exercer suas necessidades: roer. A busca pela alimentação farta e fácil se fazia de maneira simples e direta. Saíam sem medo e roíam. Diante daquele cenário o gato continuava inerte. É como se nada daquilo lhe falasse alguma coisa. A realidade em sua volta era tão nova que ele não entendia. Sentia-se abandonado na noite, na escuridão. Sentia falta do leite morno e do seu cantinho com panos macios e quentes. Sentia falta da presença de pessoas. Era a ausência do carinho e dos cuidados que lhe incomodava. Mas algo começava a acontecer. Aquele abandono provocava nele algo diferente. A sua natureza intrínseca começava a acordar. A sua essência aos poucos ia aceitando aquela realidade. A presença dos ratos e o abandono da noite fortaleciam o inevitável despertar da sua alma. A dureza daquela experiência resgatava o gato esquecido pelas facilidades recebidas. Mimi sentia que precisava ser gato. Este poder precisava ser vivido, era a sua razão de existir. Ser gato. Agir como gato. Precisava começar a caçar. Mais do que um desejo, era a sua necessidade que gritava. Ele estava com fome.
Aos poucos Mimi ouvia pela primeira vez um miado de uma gata. Aquele som agudo, melodioso e carnal jamais ouvido fez despertar nele algo diferente. Sentimento de desejo e medo. Aquilo soava como um convite:
- Venha passear aqui em cima. Aqui fora, no alto do telhado. Venha ser livre! Não tenha medo o telhado é o nosso destino. – essa era a mensagem que Mimi recebia da gata lá fora. Miloca era uma gata livre, acostumada a caçar, a sair para noite, se divertir, a viver como uma gata. Aquilo assustava Mimi. Apesar de ser mais jovem, mas tudo que ela tinha vivido e foram muitas as aventuras, o encantava. Fazia-o sentir o quanto a sua vida tinha sido limitada, mesmo sendo uma boa vida. Mimi sentiu pela primeira vez o amor, o desejo e a sedução. Naquela noite ele pode ousar, ser feliz e fazer Miloca feliz. O céu era o limite e o amanhã uma incógnita. Talvez uma dádiva para os gatos que livres e corajosamente passeiam sobre os telhados.
Já dentro do depósito Mimi aos poucos foi percebendo os ruídos e os movimentos no ambiente. Aquela movimentação vinha de toda parte, de cima, de longe, do lado e de perto. Como uma fagulha que percorre o pavio até a explosão final, o instinto adormecido por anos foi se acendendo. Em poucos minutos ele começava a exercer a sua natureza de gato. Sem pressa e com a precisão de um exímio caçador ele foi matando dezenas de ratos. Outros tantos fugiram e se mantiveram escondidos por toda a noite.
O dia novamente acontecia e nos seus primeiros raios Antônio já estava de pé. Naquela manhã não era somente o dever da labuta que o chamava, ele estava ansioso para saber como estava o seu gato. No fundo ele tinha dúvida da capacidade de Mimi. Tinha medo que algo de ruim tivesse acontecido. Ele nem conseguiu dormir à noite. Ficava pensando em cobras, raposas, corujas, cães e tudo mais que a noite poderia guardar. Ele sabia que Mimi era um gato inexperiente e essa ideia o atormentou a todo instante. Quando abriu as portas do depósito, não conseguiu acreditar no que viu. Dezenas de ratos mortos! Alguns totalmente sem vida, outros ainda agonizando. A limpeza tinha sido total - imaginara ele. Mimi tinha feito um excelente trabalho, tinha conseguido. A alegria que ele sentia agora era enorme, quase paternal. Toda a sua dedicação tinha um sentido agora. Depois daquele momento de intensa alegria e surpresa ele começou a procurá-lo. Sabia que ele estaria dormindo em algum local do depósito. Era um descanso merecido, que só os verdadeiros heróis podem ter. Passaram-se duas horas, ele já tinha olhado em todos os lugares possíveis e nada de encontrar Mimi. Aquela ausência o torturava, sentia-se culpado. Sua consciência não ficaria mais em paz.
Nos dias seguintes sempre voltava ao depósito na esperança de tê-lo de volta. Mas só encontrava mais ratos mortos. Era o sinal que Mimi estivera por ali. Às vezes na escuridão da noite ele tinha a impressão que o via sobre os telhados e sempre na companhia de outro gato(a). E os ratos continuaram a ser mortos dia após dia. Talvez o seu gato de estimação não quisesse mais abrir mão da sua vida de gato livre. Escolheu ser livre, buscando nas noites a sua razão de existir. Agora os telhados era o limite para Mimi.