NOSTALGIA

Ele era um velho bem velhinho. Os poucos cabelos que lhe restavam pareciam pequenos chumaços de algodão, displicentemente colados em sua nuca e nas laterais da cabeça. Andava devagar, um passo, bengala, outro passo, bengala. Chegou, parou, não sabia onde se encontrava. Havia saído para um passeio solitário, pegara o ônibus e por algum motivo desceu por ali. Estranhamente o lugar lhe parecia familiar. À sua frente uma terra seca, uma moitinha cá, outra acolá. Tudo muito familiar para o velho. Uma trave de madeira surrada à sua esquerda vencia a idade e se mantinha em pé, solitária, denunciando que o local fora palco de antigas peladas. Nem sinal da outra trave. Havia algo familiar naquela paisagem que lhe remeteu a tempos remotos, de alegria irreverente de menino. Sorriu levemente saboreando a vaga lembrança. Fez vista aos arredores, velhas casas coloridas com floreiras nas janelas apareciam pitorescas do outro lado. O campinho era marcado por imponentes cupinzeiros, obra prima de pequenos animaizinhos. O velho deteve o pensamento nessas estranhas criaturas. “Por que cargas d´águas fazem essas esculturas que afloram da terra e atrapalham tudo? Não seria mais fácil apenas cavar e morar embaixo da terra?” pensou e inconscientemente recriminou seu pensamento, afinal, era apenas um velho, as pessoas novas que devem descobrir esses mistérios.

Das ruelas entre as casinhas coloridas surgiu um menino correndo, que entrou alegre no campo; aos pés uma velha bola de borracha branca encardida. O velho pôs-se a observá-lo. Negro, bracinho fino e pernas velozes de papa-léguas, short curto, da cor da terra, sem camisa. Ele chutava a bola, corria, chutava novamente, corria e se mantinha nessa dança. Para frente, para trás, para o lado, para o alto. Avançava rumo à burlesca trave de madeira e fazia mil gols, incansável. A bola de borracha era leve e quicava de forma irregular, o que parecia fazer o menino gostar ainda mais da brincadeira. O velho riu e pensou que, na verdade, a bola que dominava o menino, fazendo-o persegui-la em uma fuga desenfreada, desviando o trajeto a cada pequeno obstáculo. O velho se distrai-se e sentou-se em um montinho de capim soltando a bengala ao lado e puxando um cachimbo do bolso interno do paletó surrado. Observava e deliciava-se com a vivacidade do menino. Daquela distância não podia ver suas feições, a vista cansada lhe traía mesmo com as grossas lentes dos óculos. Percebeu que como ele, o garoto era negro, o que lhe aumentou a simpatia e o prazer do momento. Lembrava de sua infância quando negros andavam com negros e não se misturavam muito. Com a vista cansada conseguia distinguir as perninhas finas, levando o menino para lá e para cá atrás da bola, até que um dos chutes a fez quicar, rolar, desviar-se em arbustos e parar bem em frente ao velho. Ele até pensou em levantar-se para devolver empurrar a bola de volta, mas consentiu consigo que estava cansado e que melhor era aguardar que ele chegasse, assim poderia ver o menino de perto. Ele veio em carreira, pulando as moitas e obstáculos que encontrava à frente.

- Oi vô. - disse o menino sorridente pegando a bola e acomodando-a embaixo do braço. A referência direta e íntima foi inesperada para o velho que retrucou ranzinza.

- Não sou o seu avô menino!

- Desculpe vô. – respondeu o menino de olhos baixos, em uma vozinha sumida - é que chamo todos os velhos assim. – deu uma pausa – É feio chamar os velhinhos de velho, não é vô?

- Rapazinho, não sou velho. – deu uma pausa – Nem seu avô. – o menino continuava de cabeça baixa – Olhe para mim menino, que coisa feia. Sua mãe não te ensinou a olhar nos olhos das pessoas quando falam com você! Meu nome é Antônio, viu? Se-u An-tô-ni-o – disse frisando cada sílaba - E o seu? – perguntou encarando o menino que não se atrevia a levantar o olhar mesmo depois do pito do velho.

- Antônio também senhor. – respondeu – Mas todo mundo me chama de Toninho.

Com alguma dificuldade o velho levantou-se, apoiando-se na bengala causando um susto no menino, que largou a bola e saiu de carreira até o meio do campinho.

- Ôôô menino – gritou o velho – volta aqui! Olha a sua bola.

- Pode ficar com ela senhor. – respondeu desconfiado.

- Não vou ficar com a bola. Volta aqui e vem pegar. Vamos logo! – como o menino não se moveu o velho gritou decidido: Agora, eu estou mandando!

O menino, acostumado a obedecer aos mais velhos voltou caminhando devagar, chutando o chão, com as mãos para trás e a cabeça baixa.

- Isso! – exclamou o velho quando o menino finalmente pegou a bola e a colocou novamente embaixo do braço. – Está com medo de mim?

- Não. – respondeu com medo.

- Você mora onde?

- Na rua Piracicaba, senhor.

- Rua Piracicaba, rua Piracicaba – repetiu o velho tentando trazer a tona uma velha memória. – É... acho que sei onde é.

- Senhor, minha mãe me disse para eu não conversar com estranhos na rua. Vou para casa agora.

- Olha, sua mãe é muito inteligente meu filho... Toninho não é?... Toninho. E ela tem razão. Acontece que eu não sou um estranho. E também não posso lhe fazer mal algum. Nem correr eu consigo meu filho. E você já sabe meu nome, não é? – perguntou o velho amavelmente.

O menino olhou para aquele rosto enrugado e notou que havia perdido bastante da dureza do primeiro contato, o que o fez sentir-se seguro.

- É verdade. O senhor consegue chutar bola seu Antônio? – perguntou já totalmente íntimo daquele senhor, coisa que só as crianças e os dóceis animais de estimação são capazes de fazer.

- Olha, eu acho que sim hein? Devagarzinho... sim. Espere um pouco.

O velho bateu as cinzas de seu cachimbo, observou atentamente a brasa, pegou um pedaço de papel do bolso da calça, fez um bolo, socou no fornilho impedindo a saída do tabaco e abafando a brasa e o guardou no bolso interno do paletó. O menino já o esperava perto da velha trave, onde o chão, mais gasto, tinha menos obstáculos capazes de desviar a leve bola. Lá ficaram por alguns minutos, chutando a bola um para o outro. Sempre que ela fugia, ou o velho a deixava passar, o menino corria para pegá-la e chutá-la com delicadeza, bem pertinho do velho. O velho, divertindo-se, ria um riso cansado e, se pensasse sobre isso, se lembraria que fazia um bom tempo que não ria.

- Tudo bem, tudo bem meu filho. Ufa! Já não aguento mais. Vamos nos sentar para descansar um pouco.

O menino concordou com a cabeça e ambos se sentaram em um chumaço de grama. O menino manteve a bola embaixo das pernas dobradas.

- Cansei. – disse o velho feliz. – Você ainda está cheio de energia não é meu filho?

- Tô sim senhor.

- Vá brincar vai. Vou descansar aqui. – disse apontando o campinho com a cabeça.

O menino voltou a sua brincadeira, correndo atrás da bola, enquanto o velho assistia. Em poucos minutos a alegria se foi. O mesmo menino, a mesma brincadeira lhe causou um sentimento de solidão e ele, sorrateiramente, levantou-se para ir embora. Ao virar-se e tocar a bengala no chão para o primeiro passo sentiu a mãozinha do menino segurando seu braço.

- Vai embora não vô. – pediu ele com a carinha do Gato de Botas.

O velho virou-se em um ímpeto e caiu desastrosamente no chão. Deitado de bruços golpeou com força a canela do menino com a bengala, como foice cortando o mato e gritou exasperado com voz rouca.

- Já lhe disse que não sou seu avô seu diabinho. Sai daqui! Sai daqui! Moleque dos infernos!

O menino quase caiu com a pancada e saiu danado alguns pulos pela dor. Largou a bola onde estava e correu sem olhar para trás. O velho sentou-se calmamente, pegou seu cachimbo, completou de fumo e fumou vagarosamente. Ficou ali, sorvendo a fumaça e olhando para o local onde o menino havia desaparecido por entre as casinhas coloridas. Idiota! Pensou. A bola permanecia à sua frente, se mexendo levemente pela força da brisa que passeava pelo campinho. O velho puxou a bola para perto de si com a bengala. Só então reparou que havia algo escrito no plástico branco e segurou perto de seu rosto para conseguir ler as letras miúdas em caneta esferográfica: Toninho. Então, assim como o abrir de uma cortina permite a entrada repentina da luz do dia, aquelas letras o fizeram lembrar-se de tudo: Toninho, rua Piracicaba, campinho, traves de madeira, a sua bola de plástico deixada aos pés de um velho louco há muitos anos; a fisionomia do velho caindo e o ódio em seus olhos quando lhe acertou com a bengala. A cena que lhe perturbou a mente de menino por dias. Pensou em correr na direção onde o menino desaparecera. Mas lembrou-se não podia correr. Era apenas um velho.