OSSO DURO ...
 
 
O cenário já estava, naturalmente, pronto!
A plateia, muito embora não desconfiasse de nada, já ocupava seus lugares; figurantes  e pessoal da técnica mantinham-se a postos, tudo preparado para o que, na falta de explicação, a gente atribui ao “destino”.
Eu, como espectador invisível, tenho o privilégio do olhar abrangente e vejo todo o cenário; a locação é o “estabelecimento” do conhecido Serafim, aquele que só é anjo no nome e dono da biboca que ele tem  a desfaçatez de chamar de bar. Nas mesas diminutas e nem sempre bem niveladas, espalham-se os costumeiros bebuns que vão deixar nos bolsos do Será os minguados recursos amealhados durante a semana, porque hoje é domingo, dia consagrado a Baco. Atrás do balcão, o nefando proprietário finge que limpa os copos de geleia com um arremedo de pano de pratos, hidrófobo de carteirinha.
É claro que, como “sócios” fundadores, lá estão, ocupando a mesmíssima mesa cativa, o nobre e erudito Altamiro, fidelíssimo marido da Edileuza e o flamenguista Arlindo, não tão fiel assim, mas que não perde a oportunidade de uma “boca-livre”, mesmo tendo que aturar as maledicências do seu duplo provedor.
No momento em que o Miro arengava, citando seu ídolo Karl Marx, tentando interessar uma plateia nada ligada no assunto e não entendendo patavinas, cujo objetivo era tão somente aproveitar a “boca-livre”, um vulto esgueirou-se pela apertada porta, acompanhado de um negão que, para entrar, quase levou consigo a parede frontal.  Eram o doutor Francisco, o farmacêutico instalado no sopé do morro e seu fiel escudeiro, o Mindinho.
Serafim, atônito pelo inusitado da coisa, inflamou-se e, escondendo às costas o suspeito pano de pratos, saudou o recém-chegado.
- Doutor Francisco,  é um grande prazer recebê-lo  no meu humilde botequim. Por favor, sente-se aqui nesta mesa que, antes, vou limpar devidamente.
- Pois sim, Serafim, com perdão pela rima, o prazer é nosso.
Falar em privacidade só poderia ser piada, pois as dimensões do salão só suportavam  5 mesas e, é lógico, umas coladas às outras, mais ainda que a última só era ocupada em caso de desespero, já que ficava colada ao “banheiro”.
Dessa forma, o doutor Francisco ficou tão próximo do Altamiro que apenas um espirro do Mindinho jogaria no chão todas as garrafas e, junto, o pobre do Arlindo!
-Boa tarde, senhor, não pude deixar de ouvir sua citação de Marx sobre capital e trabalho, quando ele afirmava; “O capital que não melhora, constantemente, as condições e remuneração do trabalho, foge à sua mais alta missão.” – só que não é de Marx, mas, paradoxalmente, é do grande capitalista Henry Ford.
Fingindo não ter ouvido, Altamiro continuou arengando; - Mas, caro “doutor” As.. o que me diz dessa gente que vive do sofrimento alheio?
A indisfarçável ironia da indagação fez empalidecer o boticário, mas ainda deu-lhe alento para conter o Mindinho, que já crispara as mãos sobre a mesa, pronto para virá-la sobre o salafrário e vizinhos.
O matreiro Serafim, atento a tudo, procurando resguardar seu patrimônio, imediatamente correu, à pretexto de limpar a mesa, e foi retirando todas as garrafas vazias,  declarando – “são oito”.
Da mesma forma, o pobre do Arlindo, sentindo cheiro de pólvora no ar, foi tratando de se esgueirar de mansinho, mas sentindo sempre o olhar gelado do Mindinho queimando suas costas. Já do lado de fora, suspirou, olhou para um lado e para o outro, mirou o céu e, decididamente, começou a subir o morro, com ideias muito mais terrenas e prazerosas na sua cabeça.
Lá dentro, a trégua muito sensata do ilustre farmacêutico tinha contido o desastre e, foi aí que o velho relógio de parede do Serafim, rompendo as teias de aranha  que o enleavam, começou a badalar!
O doutor Francisco, consultando seu relógio, levantou-se e  exclamou:
-  Puxa, Mindinho, quase perdemos a hora, temos que ir agora!
Visivelmente contrariado e sem tirar os olhos daquele nojento que ousou atacar seu senhor, Mindinho ergueu seu corpanzil da cadeira, mas de modo a empurrar a mesa com o joelho e espremer bem espremido um assustado Altamiro e foi seguindo seu chefe.
Quase ao alcançar a porta, o doutor Francisco vira-se e, dirigindo-se ao Serafim, diz “Senhor Serafim, ponha toda a despesa na minha conta, pois não quero que arremedos de marxistas aproveitem para alardear um novo exemplo de exploração capitalista.”
- Viu só, Será, na hora que eu ia acabar com o doutor Aspirina o gongo o salvou! Mas já que o “doutor” pagou a conta, desce outra aí e vamos recomeçar o papo!
Enquanto isso, numa certa casa, morro acima, o amor amenizava tudo e coloria mais intensamente o pôr de sol no morro!
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Imagem - Internet
  
 
paulo rego
Enviado por paulo rego em 26/11/2016
Reeditado em 26/11/2016
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