O rapaz e a leitura

Todos os dias, impreterivelmente às 16 horas, aquele rapaz subia a rua e no fim dela, onde havia uma pracinha abandonada, com seus bancos quase todos quebrados, ele sentava em um deles, que o rapaz havia endireitado precariamente, retirava de uma sacola um livro e punha-se a ler. Ficava ali até a claridade do sol se esconder atrás das casa e árvores. Como não havia postes com lâmpadas, quebradas pelos moleques que ali se juntavam para jogar bola, o jeito era retornar à sua casa e enfrentar as constantes brigas e discussões entre mãe, pai e irmãos.

O ambiente de casa era verdadeiramente infernal. Eles brigavam por tudo, dinheiro, comida, afazeres domésticos e até por namorada. Uns mais afoitos que outros. Nem mesmo a mãe conseguia controlar a bagunça sempre reinante na casa de seu Jorge e dona Maria Esmeraldina. Eles há muito tinham perdido o controle, as rédeas do lar doce lar. Para Walfrido, era impossível viver ali. Só que ele ainda não tinha idade suficiente para sair de casa, tampouco trabalhava para se sustentar. Vivia às custas do pai e dos irmãos mais velhos, que contribuíam para o sustento da família.

Ao todo, na casa, eram sete pessoas, pai, mãe, quatro irmãos e ele, o Walfrido, sempre calado, não expressava opinião, não palpitava em nada. Bem que ele queria, mas não deixavam, foi sempre assim, desde criança, embora já tivesse ultrapassado os dezesseis anos. Para os outros ele não existia, ninguém notava quando estava presente ou ausente. Às vezes, ficava até sem comer, pois não se lembravam dele quando da repartição da comida. Ele não reclamava, ia para a casa de dona Marlene, que sabendo o que acontecia naquela casa, amparava o menino desde sempre.

O rapaz se refugiava nas leituras, lia quase um livro por dia, tomava emprestado da biblioteca da escola. Chegava a ler duas ou três vezes o mesmo livro, pois, já não havia títulos novos para satisfazer sua curiosidade pelas palavras e acontecimentos do mundo. Às vezes, pedia emprestado aos colegas, mas era pouca a receptividade desse pedido, os pais diziam para seus filhos: “dinheiro, discos, livros e mulher, não se empresta”.

Decepcionado, ficou matutando como conseguir novos livros para ler. Uma ideia lhe passou pela cabeça, procurar entre os lixos das casas de pessoas abastadas. O resultado foi excelente, o que fez perguntar para si mesmo o porquê das pessoas dessas casas, não gostavam de guardar livros? Será que ao menos eles leem livros? Outro passo foi procurar nos lixos das editoras, livrarias, onde conseguia livros com defeito, fora de circulação e estragados pelo tempo de guarda em depósito.

Assim, Walfrido conseguiu juntar uma quantidade de livros que fazia inveja a qualquer biblioteca de escola de sua cidade. Todos estavam guardados na casa de dona Marlene, que havia separado um dos quartos, para esse objetivo. Ela era viúva, morava sozinha e nutria afeição pelo menino, como ela sempre se referia ao seu protegido. Ninguém da casa do rapaz sabia desse relacionamento afetivo entre os dois.

Dos achados entre as latas de lixos dos ricos, ele conseguiu pescar obras, que mais tarde veio a saber que eram raras e valiosas. Três dessas ele lembra que achou no lixo de uma casa, cujo dono havia morrido três ou quatro dias antes. Os parentes herdeiros não eram dados à leitura e jogaram fora muitos livros, principalmente os mais velhos.

Walfrido lia de tudo, se detinha mais nos clássicos, tais como: Odisseia, poema épico de autoria atribuída a Homero, que narra os grandes acontecimentos da Grécia Antiga; Cem Anos de Solidão, do colombiano Gabriel Garcia Márquez; Ensaio sobre a Cegueira, do português José Saramago; O Primo Basílio, do também português Eça de Queirós; O crime do Padre Amaro, do mesmo autor; Dom Quixote, do espanhol Miguel de Cervantes; O Morro dos Ventos Uivantes, da britânica Emily Brontë; Dom Casmurro, do brasileiro Machado de Assis; e tantos outros menos célebres.

Ele decorava os momentos mais emocionantes dos livros lidos e contava para a dona Marlene, que também se deliciava e batia palmas quando o seu protegido terminava as narrações. Certo dia ela pediu para Walfrido criar uma estória para ela, falando da vida dele e do relacionamento entre os dois. Pouco mais de 30 dias ela recebeu de presente, já encadernado, um pequeno livro com o título “A amizade desinteressada, às vezes, é o que mais importa”. Infelizmente dona Marlene não chegou a lê-lo todo, ela foi encontrada, na manhã seguinte, com o livro aberto exatamente nas páginas do meio, sobre o peito, e um largo sorriso de felicidade. Da página central podia-se ler o título do terceiro capítulo: “Dona Marlene, minha segunda mãe, ou seria a primeira?”, que conta a estória do relacionamento entre os dois.

Muito comovido, Walfrido pegou o livro, acariciou-o e prometeu: — vou aprofundar a nossa amizade, acrescentando passagens que procurei não mencionar para não machucar meus familiares, caso eles viessem a tomar conhecimento desse pequeno livro.

Naquele ano, o primeiro livro de Walfrido foi publicado, merecendo elogios da crítica especializada e prêmios. Algum produtor cinematográfico comprou os direitos para produzir um filme. O rapaz foi contratado por uma editora que encomendou dois livros para o ano seguinte. Era o sucesso, parecia que Dona Marlene continuava protegendo o filho que não nascera de seu ventre, mas que ela amava acima de tudo.

Gilberto Carvalho Pereira, Carcavelos, PT, 4 de novembro de 2016

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 21/11/2016
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