Carrilhão

O Carrilhão

Sete horas da manhã, Floriano já tomou o seu café junto com a família. As despesas com telefone, gás, luz, etc, estão devidamente catalogadas. Como sempre beija os filhos e despede-se da mulher. As sete e dez já está no ponto aguardando o ônibus que o leva para a cidade. Na repartição pública faz o que faz, há quinze anos: bater o ponto, redigir ofícios, copiar portarias, efetuar cadastramentos. Às oito horas, chega. Cumprimenta o contínuo, e vai direto para sua mesa. Limpa os óculos, cuidadosamente, abre a gaveta da escrivaninha, retira dela uma pilha de documentos e começa a examinar. Retifica alguns com sua caneta vermelha; outros, faz observações, sempre muito atento para que nada fique pendente. Sem pressa, o pessoal chega. Dona Lurdes, muito sorridente, o cumprimenta, pergunta pela família e senta-se. Sr. Geraldo encarregado do almoxarifado, naquele jeitão displicente, com barba por fazer, mal acena. Logo depois Alberto, Marilu e Antenor tomam seus lugares. Todos têm a mesma função: aprontar documentos. Tudo é supervisionado por Floriano, com rigor.

Marilu mal senta e já vai para a mesa de dona Lurdes saber que esmalte é aquele tão chamativo. Acha a outra o máximo. Embora quarentona os homens babam, todos sem exceção queimariam suas economias, por uma noite com dona Lurdes. “Tem que ter classe entende, Marilu? Classe. Faz jogo duro, tripudia; os homens adoram isso”. A outra ouve seus conselhos, anota. Alberto goza Antenor pela derrota do Flamengo. Antenor fica pra morrer.

Floriano suporta a duras penas. Às vezes se pergunta o quê fez para estar misturado com aquela gente. É preparado, fez concurso para aquela repartição. Tirou primeiro lugar e, no entanto...

Foi interrompido nos seus devaneios. Seu Geraldo comunicou que o material - resmas de papel, cartuchos para impressora, etc, - não estava batendo com a nota de compra. Floriano empalideceu. Mas como, se ele mesmo conferiu item por item na semana passada? Esse seu Geraldo é mesmo um incompetente. Pede a nota, quer conferir tudo de novo. Ia esfregar a fatura na cara daquele infeliz. Que chateação. Vai ter que varar a noite fazendo a contabilidade de todos os itens. Isso nunca havia acontecido. Culpa deste seu Geraldo! Um funcionário relapso, emporcalhado, mal vestido. Ou será que ele está ficando velho? Afinal há quinze anos trabalha naquela repartição. Já pensou um cidadão de honra ilibada, ser acusado de superfaturamento? E seus filhos, sua mulher, a família, oh que vergonha! Seu Geraldo com um sorriso irônico deposita sobre a mesa uma pilha de notas. Dezessete horas. O expediente encerra.

Floriano está só. Apenas, como compainha, o carrilhão, seu velho amigo desde a infância, preciosidade, relíquia da família, que pôs na parede, quando foi distinguido como funcionário padrão. Diante dele um monte de papel e aporrinhação. Começa a verificar a papelada, mas não se concentra. De quinze em quinze minutos o relógio toca um estribilho enervante.

Isso é vida? Contar papéis e no final do mês pagar contas e contas com aquele ordenado miserável? Alguém reconhecia sua honestidade, sua ética, era notado no meio da multidão? Não era como tanta gente, que por migalhas, a vida humilha. Infringidos por doenças terríveis, duros, uns trapos implorando um pouco mais de tempo. Não! Floriano, jamais, em hipótese alguma, seria escravo de uma vida indigna! Lá no alto o carrilhão martelava seus ouvidos. Meia noite.

Num repente pega o seu paletó e vai pra rua. Na portaria do prédio dá de cara com Bin Laden! Só aí se lembra que já é carnaval. Destoa entre palhaços, colombinas, bloco de sujos. Um bando de homens vestido de mulher mexe com ele; ganha um beijo e um banho de talco e água. Um pivete quase bate sua carteira. Atordoado vai aos trancos e barrancos, náufrago no meio do povo.

Parou no primeiro bar na Cinelândia. Respirou fundo. Pediu uma cachaça, depois mais uma e todas. Relaxou.

Passava um bloco. A música era contagiante. Uma deusa... Quase nua... Vinha na frente da bateria... Safira... Flecha no coração.

Floriano acendeu. Brincou, riu e fez tudo aquilo que nunca sonhara. Não tinha mais a gravata, nem o paletó. Só chope e suor escorrendo por seu peito nu. Mexia com uma, beijava outra, engatava numa terceira.

No meio da bateria, tamborins, cuícas, reco-reco extasia, vai fundo na alma de Floriano. Seu sangue ferve, o corpo freme, as pernas, braços, traçam no espaço desenhos surpreendentes. Rodopia; os quadris gingam à deriva, corpo solto, irreverente, empolga. Livre, Floriano, pássaro adejando na avenida; gargalha, exulta, com um furor dionisíaco.

No entanto agora o chão parecia fugir; os foliões, personagens de um velho álbum desbotado, evoluem em câmera lenta, o ritmo da bateria atravessado, distorcido.

Floriano procura no bolso o remédio que há anos toma religiosamente. Não acha; desesperado tenta pedir ajuda, mas o bloco, indiferente, esvaece.

Já vai alta a madrugada. Floriano caminha só na rua estreita, comprida, sob uma luz azul, tênue, refletida naquele asfalto molhado. Em sua direção vem um vulto. Restos de confetes e serpentinas, uma leve brisa, embaralham a visão de Floriano. Fragmentos desconexos, lembranças, perdas, decepções, saudades... O velho carrilhão sem ponteiros...

Uma mulher, muito branca, alta, etérea, sob um véu negro transparente, estende a mão.

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Paschoal Villaboim
Enviado por Paschoal Villaboim em 21/11/2016
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