INTERMITENTE

Amanhã faço 29. Os últimos dias têm sido caóticos. O caos da insanidade me tomou. Por fora tudo permanece parado; minha mente não para. São tantos pensamentos e tão rápidos. Seria uma espécie de loucura se aproximando? Ou um conhecimento aprofundado da realidade?

Questões filosóficas me intrigam sobremaneira. Não devia ter lido aqueles livros, não queria ter compartilhado aquelas ideias. Questões de identidade e de realidade me intrigam completamente. Não consigo parar de pensar se toda essa “realidade” existe de fato ou é tudo fruto da minha mente. Eu existo? Não tenho tanto apego a esse corpo. A possibilidade de não existir tem seu viés tentador. Tanta coisa me desagrada que o não existir pode ser a única chance de corrigir. Ao não existir, sou infinitamente melhor. Meu corpo físico jamais seria capaz de inventar tão complexa realidade paralela, tanta maldade, tanta bondade, tanta diversidade, tanta vida. A mente pensante por trás da minha realidade paralela é infinitamente melhor que eu. Eu gostaria muito de ser ela, de retornar a ela.

Os cientistas, que tanto atacam as religiões, nada mais são do que religiosos. Se por um lado é bem pouco provável que tenhamos surgido de uma porção de barro, também é bastante improvável que matéria orgânica eletrocutada tenha se transformado em seres vivos e pensantes. Pensar, esse é o grande mistério. Ter vida não é de todo tão estranho, o verdadeiramente bizarro é pensar. Faísca elétrica? Quanta bobagem! A ciência deveria se envergonhar de apresentar isso como resposta. Eu me envergonho ao pensar nessa resposta.

Essas incertezas estão, lentamente, consumindo minha mente. Difícil demais excluir a realidade paralela do jogo, ela é tão real. E o mundo é tão perfeito. O mundo nos faz sentir tão especiais e tão pequenos. O café piora tudo. Superdimensiona pensamentos nanicos, que não deveriam prosperar. Eles prosperam, o corpo inteiro arrepia. Existem coisas que não podem crescer. Existem pensamentos que à medida que crescem, destroem. Consomem a paz, o sossego, o sono.

Chega um momento da intermitência da mente que até o sono é emblemático. Dormir é ter uma mini morte. A ressurreição é feliz? Nem sempre. Quando o sono é destrutivo, a mini ressurreição é assustadora. Acordar durante esse sono é pior ainda. É como um suspiro do inferno. Voltar de volta à vida às vezes dói muito. Se foi Deus realmente quem criou a vida, decifrar o sono é mais um desafio. Seria uma prévia da morte? Um lembrete de que o fim pode chegar a qualquer momento? Se for um lembrete, soa como uma ameaça. Mas também pode ser apenas uma gentileza, nos mostrando que a morte não é o fim, afinal, sonhamos ao dormir. Há também os pesadelos. O que seriam os pesadelos? Dias de fúria divina? Tantas dúvidas.

Ao mesmo tempo que tudo é tão inexplicável nesse universo, o ser humano consegue fazer coisas tão complexas. Aliás, consegue fazer não, o meio ambiente permite que eles façam. A verdade é que ninguém consegue fazer nada, o meio é que permite que as coisas sejam feitas. Internet, por exemplo. Como é que digitando símbolos aleatórios num teclado conversamos com pessoas em outro lugar do planeta, às vezes até fora do planeta? Sair do planeta, outra coisa que assusta, foi tudo tão bem calculado: existe uma gravidade nula, que permite viajar o universo com uma quantidade finita de combustível. Gravidade nula? Realidade paralela?

E o dever de cuidar dos mortos. Será mesmo que eu vou morrer? Não sei, fizeram-me acreditar que é a única certeza da vida. Mentira. Não tenho nenhuma certeza que vou morrer. Para obter essa certeza teria que partir do princípio de que não vivo uma realidade paralela. Mas é difícil excluir a hipótese da realidade paralela, as vezes ela é tão factível, muito mais factível, por exemplo, do que a ideia de que o mundo é organizado pela economia. Engenhosa demais a economia, que conseguiu organizar tudinho, levar o homem pra Lua e permitir que as pessoas conversassem a bilhões de quilômetros de distância. Seria Deus essa Economia? Ela organiza tudo, falam que ela permite que alguns realizem seus sonhos, e também pune, dizem que mata muitos, especialmente na África. Nunca fui na África, não posso afirmar com certeza, baseio-me no que me foi informado. Álias, todas as minhas informações são baseadas no que me foi passado. Uma sequência encadeada de informações que formam minha visão de mundo. Uma só falsa e o castelo de cartas rui, fico cego. Cego? Não, já estou cego. Quem não sabe exatamente o que vê é cego? Se assim for, estou cego desde sempre. Nasci cego. Jamais poderia escrever “nascemos cegos” porque isso implicaria em admitir que algo além de mim existe e estou bem longe de ter essa certeza. Minha cegueira é tão completa que atrapalha minha linguagem.

O fato é que o caos tem me dirigido. E me dirigiu por caminhos tão estranhos que fez crescer dentro de mim o desejo de me jogar de um prédio. Não, não quero morrer, não se trata disso. Também não quero viver, não estou numa fase de trabalhar com vontade e suas significantes. Queria respostas mais nítidas. Minha mente vem remoendo a ideia de que a morte não existe. Ela trabalha com a forte hipótese de que ao pular do prédio, alguém apertaria a tecla “pause” e eu então teria as respostas. Antes mesmo de cair ao chão a realidade paralela se abriria e me mostraria o que é real, se é que na realidade paralela as coisas podem ser classificadas como sendo ou não reais.

Daí vem a preocupação com o dever de cuidar dos mortos, de enterrar os mortos. A morte, nesse ângulo de realidade, remete ao medo de morrer, ao cuidado que devemos ter com quem parte. Todos vão partir. Vão? Eu vou? Nem sei porque ou quando comecei a pensar, por quê pararia? Nada faz sentido. O que surge do nada, do nada se esvai (a vida).

Desde pequeno fui ensinado a respeitar os mortos, a temer a morte. Acho que o respeito advém justamente desse temor. Fui ensinado que é algo tão terrível que devemos admirar os que já passaram por isso. Por quanto tempo? Pouco, em breve tudo é esquecido. Em breve todos somos esquecidos. Poucos se perpetuam, poucos se tornam mitos. E os mitos não se perpetuam por si próprios, mas pelo que foi propagado sobre eles. Sequer é necessário terem existido, bastava existir sobre eles uma imagem, uma versão sobre seus supostos feitos e pronto, manteriam sua existência na memória coletiva por um tempo um pouco maior.

Eu falo do ano dois mil, dizem que meu planeta já tem mais de cinco bilhões de anos e que há pouco mais de 10 mil os primeiros humanos passaram a existir. Sim, eu sou um dos humanos. É o que me fazem acreditar. Embora seja uma crença frágil, é uma crença. Não, ao que parece não há o direito de escolher entre ser humano ou não. Dizem que é uma coisa que se é. Se me perguntassem o que queria ser, preferia ser cachorro. São muito mais carinhosos e bonitinhos, mesmo os feios.

É tudo tão ilógico (ano dois mil - rizível), quem inventou isso? Optamos por contar os anos de acordo com o número de voltas que nosso planeta dá em volta do sol. O sol é a estrela do nosso planeta. É uma das maiores fontes de energia. Tudo bem colocadinho no lugar certo, parece até que foi alguém que colocou. Bem milimétrica essa conexão, tudo feito exatamente para dar certo. Engenharia complexa e acertada. Intrigante.

Também optaria por não viver no planeta Terra, caso me tivesse sido dado optar, acho que ia para Saturno, tem um anel, um planeta com um anel. Seria bem mais interessante ser um cachorro e viver em um planeta com anéis. Não sei se lá é mais quente ou mais frio que aqui. Espero que seja mais frio, odeio calor. Mas, se fosse mais quente, uma vez que eu fosse um cachorro, também não haveria problemas. Cachorros suportam calor com mais facilidade, é possível abraçá-los por um tempão sem que reclamem de calor, muitas vezes a gente os deixa ir porque quem está com calor somos nós. Na verdade, é um sentimento bem triste e complexo, não queremos deixá-los ir pois os amamos, mas fica tão quente que não suportamos mais. A verdade é que eles ainda suportariam muito, mesmo com calor e pelos.

Contam estórias incríveis sobre cachorros, não acredito em boa parte delas. Em algumas eles agem como heróis, salvam vidas, especialmente a de seus donos. Acho que o amor faz com que a gente queira que as coisas sejam melhores do que elas são, por isso acho que as pessoas inventam, para que o resto das pessoas vejam o mesmo ser especial no cachorro que o dono vê. E sim, nas relações entre humanos e cachorros há amor, muito amor, talvez até amor verdadeiro, para o humano amar é muito fácil, basta que o amem. Os cachorros faze isso, acho que são os animais na Terra com maior capacidade de amar.

Eu preciso me concentrar, eu preciso ter foco, eu preciso explicar exatamente o que está acontecendo. O problema é o barulho do túnel. Quando o pensamento vai muito fundo, eu sempre ouço o barulho do túnel. Seria absurdo existir um túnel ligando tudo isso à realidade paralela? Por que esse barulho do túnel. As vezes também parece o barulho de um tsunami se aproximando e caindo. Sim, conheci a palavra tsunami em vida, foi bastante inusitado, disseram que muita gente morreu, há até vídeos. Uma onda gigante, como será que ela acabou? Será que simplesmente desmanchou antes de atingir uma determinada pessoa e ela se salvou? Deve ser extremamente reconfortante ter sentido a lambida da tsunami nos pés e ela ter decidido retornar ao mar exatamente nesse ponto. Deus teria dado outra chance? E por que tirou a chance dos outros? Sim, somos egoístas.

Egoístas mesmo. Ontem mesmo uma pessoal que, por um acaso do destino, estudou na mesma sala de aula que eu por um tempo veio me dizer que estava com saudades de mim e que eu estava muito diferente. Eu não entendo bem o vínculo que nos une, seria o das saudades? Sinceramente nem lembrava de já ter conhecido uma pessoa com esse nome. Mas ela dizia ter saudades, não quis falar nada. Ao não falar nada a gente também fala tudo, é verdade. Daí ela continuou a perguntar como estou. Olha, não sei dizer. Ao prosseguir em sua conversa que me causava estranheza fui me dando conta que meu cérebro não gostava dela, não me lembrava a razão, mas, certamente ela não deve ter sido uma boa pessoa comigo. Meu cérebro faz isso comigo sempre, ele me afasta das pessoas que podem ter me feito algum mal, mas sem me lembrar qual o mal me fizeram, acho que para eu não sofrer. Nem precisava, não sou uma pessoa que precisa do passado para sofrer. O presente e o futuro já me são bem suficientes. Também não é muito preciso dizer que sofro, angústia não é sofrimento. É preciso ser muito cirúrgico com as palavras, elas podem ser muito perigosas. Amplamente traiçoeiras.

Não sei que tipo de pessoa ela esperava encontrar. Não sei que tipo de pessoa ela deixou para trás. Não sei a razão de alguém procurar alguém que não a procura por anos. Enfim ela encontrou, mas também já deixou para trás. Sua última palavra foi `verdade`. Quem ela esperava que eu fosse? Quem ela esperava encontrar?

Paulo Vitor Otaviani Nilo
Enviado por Paulo Vitor Otaviani Nilo em 21/11/2016
Reeditado em 29/01/2019
Código do texto: T5830424
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