Nos recônditos da alma
Luíza, com os cotovelos apoiados no parapeito da janela, por volta das dezessete horas, mês de setembro, a luminosidade do dia ainda contagiante, recorda-se de um passado desagradável que se mantém ainda vivo em sua alma. Sente-se invadida por emoções e sentimentos diversos desses que, com certa frequência, costumam invadir a alma das pessoas, numa invasão significativa e, às vezes, tão marcante, que as deixam vulneráveis, fragilizadas. Era assim que Luíza se sentia naquele momento.
Essa sensação de tristeza profunda e de impotência diante da realidade já a acompanhava há alguns anos. Lembra-se ainda angustiada do primeiro instante que a viu surgindo por entre a multidão de pés de soja (ou algodão?), não se lembrava mais. Mas também não faz diferença, o que tinha ainda vivo na memória é que tudo acontecera numa chácara, próxima ao centro da cidade onde nascera, criara-se e mora ainda hoje. A sensação parecia um gigante a se erguer em meio a tanta aflição. Nunca mais se livraria dessa companhia indesejada e esmagadora da sensibilidade e da alegria de viver. Talvez não tivesse se dado conta disso naquela idade, era ainda muito imatura.
Caminhava em direção à casa de seus tios, num feriado de sexta-feira, sete de setembro, quando foi interrompida por uma figura (des)conhecida. Não teve tempo nem espaço para ação! Imobilizada, de costas, boca cerrada, sentiu apenas a inesquecível dor da penetração, num gesto de violência que jamais experimentara. Num momento de vacilo, do agressor, a criança de apenas sete anos de idade, conseguiu gritar desesperadamente, intimidando o agressor que a soltou rapidamente e com certa facilidade, e fugiu por entre os pés de soja, fazendo fortes ameaças caso a garota contasse o ocorrido à sua mãe, ao seu pai ou a algum adulto, num gesto de covardia que, corriqueiramente, acompanha esses momentos. Porém, o pior, e a dor maior estavam por vir.
Essa criança a partir daí viveria anos e anos dividida entre as lembranças da dor descrita acima e da dor da decepção a lhe corroer a alma. A dor física foi cessada lá, naquele instante, embora nunca superada; as marcas na alma, intransponíveis ainda hoje.
Entre os quinze e dezessete anos, Luíza começou a notar que seu comportamento era diferente do comportamento de suas amigas. Não entendia bem, mas sentia-se incomodada com a situação. Era comum as garotas de sua idade quererem namorar, beijar e serem seduzidas pelos garotos da época. Luíza, embora consciente de sua beleza física e de seu poder de sedução, pois era bastante assediada pelos rapazes da cidade, não correspondia a esse assédio e nem sentia falta disso. Mostrava-se sempre arredia ou furtiva.
Passados mais alguns anos, começaram a surgir os problemas de saúde, advindos desse mal todo, dessa fragilidade da alma. Luíza começara a ter problemas psicológicos. Eram mais de vinte anos de dores na alma cada vez tomando maiores proporções e apenas com algumas tentativas vãs de libertação. As ameaças proferidas pelo agressor desfilam ainda em sua mente e exercem ainda o mesmo poder de medo, de constrangimento!
Luíza sente-se como que vivesse uma vida dupla, como que uma outra alma lhe pertencesse, como que uma outra vida paralela à sua ocupasse também o interior de seu corpo. Torna-se muito difícil para ela absorver esses sentimentos tão contraditórios. É como uma outra vida a gritar dentro dela, a querer se livrar desse aprisionamento aterrorizante. A dor da alma é muito maior e mais disforme que a dor física. Às vezes, assume formatos e constâncias insuportáveis. Contudo, Luíza se vê incapaz de favorecer para que essa libertação ocorra, teme ainda pela vida das pessoas que ama e se sente impotente e frágil diante da situação.
Já mulher feita, mãe de família, e com seus quarenta e nove anos, cansada e revoltada por ver até mesmo sua vida a dois, destruída, em grande parte por culpa desses traumas, Luíza decide vencer o constrangimento e não temer mais as fortes ameaças do agressor que, com o passar do tempo, foram tomando proporções cada vez maiores, chegando a tomar o formato de monstros a habitar a pobre alma de Luíza.
Ela, então, vai a uma clínica psiquiátrica e pode, finalmente, abrir seu coração e dividir com alguém essa dor da alma, revelando, em meio a choros contidos e dores lancinantes na alma, que seu agressor era um irmão, apenas por parte de pai, e que não convivia com ela, pois ele morava com uma tia, irmã da mãe dele. Ela se certificou de que era mesmo o irmão pela voz quando ele fez as ameaças tão contundentes e amargas. A falta de convivência entre Luíza e o agressor, associada a outros distúrbios próprios de quem nasce com a triste sina de ser pedófilo, contribuiu fortemente para que esse fosse o enredo deste conto. Que outros contos tenham um final mais feliz!