Ninguém tem culpa

Ninguém tem culpa. Ninguém tem culpa.

Como um mantra, ele pensava, durante a caminhada. Caminhava pela rua, desde as dez horas da manhã, e já era passado da meia noite. Meia noite e um, marcava o relógio no canteiro central da avenida. Seus pés ardiam diante das bolhas que se multiplicavam, culpa do sapato que era maior do que seu pé. Não possuía um níquel furado no bolso. Morava no outro lado da cidade, e não estava nem á meio caminho andado. Morava, não. Não dava para chamar aquilo de moradia. Um ser humano não merecia estar naquela situação. Era uma lona armada, escorada com madeiras disformes, sem soalho ou piso, apenas chão batido, como viviam os homens nas cavernas. Provavelmente era mais confortável. Mesmo assim preferia estar em casa naquele momento. Não caminhando pela rua numa madrugada fria de outono.

Estava desesperado. Seu filho menor, ainda de colo, chorava de fome. Os outros, eram seis, não choravam mais, talvez acostumados com a fome, ou sem forças para externar seus sentimentos. A mulher parecia mais um espectro de gente, onde os olhos aprofundavam no osso craniano, como se fosse uma múmia do antigo Egito. Ele também não estava assim uma fortaleza, estava mais para uma palhoça caindo com o vento.

Às vezes espera-se que algo mude, ou que vida se desenhe a favor. Mas ao tentar arrumar emprego, as pessoas assustavam com sua aparência fúnebre. Não era de hoje, para ser mais sincero, desde quando perdeu seu ultimo emprego, já iam mais de quinze anos, sempre fora repelido das vagas, ora por idade, ora por aparência. Já não era mais menino quando saiu do ultimo emprego, e estava complicado arrumar um emprego, agora então, com quase sessenta e dois, não iria conseguir mesmo, mesmo assim, não desistia, afinal, como dizem, a esperança é a ultima que morre.

Acenou para o ônibus, que parou, subindo com ele mais quatro pessoas que estavam na parada. Tinha cerca de vinte pessoas no interior do veiculo, todos depois da roleta de cobrança. Não passou. Sentou-se num banco logo atrás do motorista, pisou em cima de algo. Era uma bolsa pequena iguais as que jogadores de fim de semana usam para levar a chuteira. Poderia estar ali sua salvação, com certeza teria algumas moedas, suficientes para pagar a passagem. Suspirou aliviado, colocou a bolsa encontrada dentro da sua, uma pequena valise que carregara, e descansou um pouco escorado na poltrona.

Estava mesmo longe de casa, preço por se morar numa cidade grande, passava de meia hora de viagem, quando resolveu abrir a bolsa para ver o que tinha encontrado. Certo de que ninguém vira sua manobra, abriu sua valise, e deixando a outra dentro, para fingir estar mexendo na sua. Encontrou uma farda de policial militar, dobrada e uma arma. Revirou a bolsa em todas as possibilidades e mais nada, além disso.

Olhou o relógio velho e carcomido que levava no pulso, já chegava à uma hora da madrugada, ainda restavam doze pessoas no coletivo, contando os passageiros, ele, o cobrador e o motorista, e ele precisava descer. Passou pela roleta avisando que não tinha dinheiro para pagar.

- Para pagar não tem, mas garanto que para estar num boteco até esta hora bebendo, tinha?

Ele não bebia, nem fumava, mas não tinha argumentos para convencer o cobrador. O homem que estava na sua frente lhe cobrando o bilhete, não fazia por mal. Esta situação não era sua culpa, estava na ultima viagem de seu turno, iniciado às cinco e meia da tarde. Tinha família, filhos e não podia pagar passagem para todos os passageiros que alegavam não ter dinheiro, pois este dinheiro saia de seu magro ordenado no final do mês. Neste dia mais do que nunca, estava em frangalhos, tinha discutido com o dono da casa por causa da insistente cobrança do aluguel há dois meses atrasado. Só queria ir embora. Mas precisava terminar seu horário, e chegar em casa para dormir tranquilamente ao lado de sua esposa grávida de seis meses.

- Todo mundo diz isso. Estou cansado de ouvir estas desculpas esfarrapadas. Agora vai pagando vagabundo.

Neste momento, revoltado com as acusações infundadas do cobrador, colocou a mão na valise para acabar de vez com aquela humilhação. Ao tempo de que parou pensando, não era disso, nunca fizera o mal para ninguém, não seria agora que cometeria uma bobagem tamanha como à imaginada neste calor de acusações pesadas sobre ele, na pessoa do cobrador de passagens. Ele estava no direito dele, cobrar era seu trabalho, e que não poderia deixar ninguém passar sem pagar, se bem que não deveria ele, fazer acusações levianas.

Decidiu por fim de uma vez por todas, colocar um ponto final nesta gama de acusações humilhantes que ouvia pela vida afora. Sacou da arma que estava na bolsa. Apontou para a cabeça do cobrador e ordenou que pedisse desculpas pelas ofensas ao mesmo tempo mandava todos calarem a boca, uma vez alvoroçados com o assalto.

O motorista cansado com cerca de cinco horas, quase ininterruptas, ao volante rodando pela cidade, do bairro ao centro e do centro ao bairro, parou a coletivo, mas não pode abrir a porta, pois o assaltante disse que atiraria no seu colega. Estava nesta vida a mais de quarenta anos, poderia estar aposentado, mas não quis, pois continuaria fazendo o que gostava. O assaltante estava transtornado, nunca estivera num assalto com uma pessoa tão cruel, achou que não escaparia a mais este assalto na vida. Arrependeu-se pela opção de não se aposentar. Descobrira esta semana que tinha um câncer no esôfago. Não contara para seus familiares e tampouco para sua esposa. Jamais mentira para sua companheira de longos anos, mas não queria assustá-la. Olhou perdido para o asfalto seu companheiro de tantas jornadas, queria voltar para casa. Olhou o relógio. Era dez para as duas da manha. Há quase cinqüenta minutos estavam sob a mira de uma arma de um lunático. Pensou na sua família, nos filhos e até no seu netinho que nasceria dali a dois meses, e viu que o pesadelo estava apenas começando. Um carro da policia militar parou na frente do ônibus.

- Meu Deus.

O homem com a arma na mão também viu.

- Queremos pegar a arma de meu colega que foi esquecida no veículo.

O homem apresentou a insígnia policial, mas o motorista não abriu a porta, insistiu. Queria terminar seu turno, antes disso, porém, precisava deixar seu colega pronto. Muito contrariado, resolvera ir atrás do coletivo com a finalidade de recuperar a farda e arma do policial. Tinha que voltar para casa num bairro violento, àquela hora da manhã, estava com uma filha doente, louco para saber como ela estava. Foi quando percebeu a situação. Estavam todos, dentro do ônibus, sob a mira de uma arma. Correu para o carro, pediu reforço.

Dentro do coletivo a tensão crescia. A presença do policial lá fora, fez com que o homem com a arma na mão entrasse em desespero. Não poderia deixar que a Polícia entrasse no ônibus, não queria que sua família o visse como um criminoso. Já que chegou a este estremo, levaria até o fim. Não iria preso. Colocou a arma na cabeça do cobrador.

- Quem chamou a polícia? Quem?

- Não sei... Por favor, não me mate...

- Vou te matar. Tu deves ter acionado algum alarme.

O motorista falou.

- Eles vieram buscar uma arma que foi esquecida aqui dentro.

- Cala a boca. Não estou falando contigo.

Mandou o motorista sair do seu lugar e juntar-se aos demais na parte central do ônibus. Todos estavam tensos, o assaltante mais ainda. Ninguém ali duvidava que logo ele mataria um. Era sua pretensão, mas talvez não chegasse a levar a cabo seu intento. Tinha medo. O medo de ser preso. O medo de ter sua vida transformada, de sofredor a vilão. Não era o vilão desta história. Não queria ser pelo menos. Tinha seus filhos, tinha sua esposa e irmãos, não queria ser um bandido. Não era sua culpa. Era tarde demais para voltar atrás, agora teria que ir até o fim. O medo queria lhe fazer chorar. Mas não podia chorar. Precisava manter a serenidade. Chorar daria a para os outros a impressão de estava fraquejando. Seu medo passava uma impressão de frieza no olhar.

Já eram quase três horas da madrugada, e as famílias das vitimas do seqüestro no ônibus já começavam a chegar, junto com varias viaturas policiais. As pessoas eram trabalhadores que não chegavam, além da uma e meia, em casa. Começava ali um problema muito grande para este pai de família pobre e acuado pela situação.

As coisas tomaram proporções inimagináveis no inicio da jornada, ele só queria ir para casa, mas o cobrador instigou a cobrança e humilhando-o. Sua única moeda no bolso era de um centavo, que precisava dividir com a igreja do fim da rua no próximo domingo, as contas do armazém, e talvez, o mendigo que sempre ao meio-dia aplaudia no seu portão. O cobrador precisava cobrar a passagem, já cansado de ter prejuízos enormes no final do mês, por causa dos espertinhos que tomavam o coletivo e depois alegavam não ter dinheiro, e não tinha mais o que fazer.

A culpa talvez fosse do policial. O que o maluco tinha que ter esquecido a bolsa dentro do ônibus? Se ao menos tivesse algum dinheiro ali dentro nada disso teria acontecido. O policial, que fazia a ronda noturna da meia-noite até as seis da manhã, complementava a renda fazendo bicos durante o dia para uma loja como segurança. Dormia um pouco do inicio da noite até proximo das onze horas, depois tomava um ônibus para chegar ao quartel dez para a meia-noite. Nunca usava esta linha, mas como tivera um dia tumultuado e cansativo, perdera a hora de acordar, atrasado tomou o ônibus desta linha, e quase correndo desceu do coletivo rapidamente, depois de quase dormir sentado, esqueceu da arma e da farda, pois sempre vinha fardado. Não era culpa dele. Estava lá fora com arma e farda emprestadas, para honrar seu trabalho, embora o sono tentasse lhe derrubar, lutava para se manter acordado. Já começava a ter alucinações sonolentas.

Mais uma vez quis chorar, mas chorar é para fracos. Lembrou que era um fraco, um fraco.

- Eu não sou fraco! Eu vou matar todo mundo!

- Eu só quero minha arma!

- Nem ouse entrar que eu atiro!

- Calma! Muita calma! Não vá fazer uma besteira!

- Minha vida já é uma besteira. Tenho uma família com fome, não tenho emprego... Olhem para mim! Olhem para mim! Tenho cara de ladrão? Tenho cara de bandido? Respondam!

Ninguém ousava levantar a cabeça. Um homem com uma arma era sempre perigoso. E a situação não tendia a melhoras, acabava de chegar mais uma viatura de policia. As saídas começavam a rarear. Foi até a parte traseira do veiculo e olhou pela janela, mais duas viaturas cercavam o coletivo. Não podia se desesperar ainda, mas já estava desesperado á horas, melhor há meses, talvez seria melhor pensar em anos. Olhou para a porta e pensou em sair correndo. Estavam a mais de três horas naquele ônibus, e nada parecia se resolver. Cada vez mais policiais chegavam, e curiosos se aglomeravam pelas ruas. Estavam ali no frio da madrugada á espera de um circo de horrores, a tragédia, a violência, e a desgraça de alguns, fazendo a alegria de outros. Não é culpa deles, ele pensa, na tv, nos jornais e nas rádios só têm desgraças.

- Eu vou matar alguém aqui se não me derem o que quero.

Tinha visto uma cena igual a esta num filme, nem lembrava o nome, nunca teve memória para isso, nem o nome do ator só lembrava da cena.

- Mas o que você quer?

Não lembrava o que fora pedido pelo personagem do filme, pediu o que mais lhe fazia falta no momento.

- Um emprego!

Houve um silêncio profundo como se alguém tivesse dirigindo uma cena cinematográfica, e fosse ordenado um silêncio absoluto. Aquela ausência de barulho lhe deixou perdido, sem ação, como se o tempo tivesse parado, ou como uma imagem congelada na tv. Pouco a pouco o povo começou a se manifestar e um burburinho tomou conta dos presentes. Ninguém tinha visto uma história como esta. Geralmente os seqüestradores pediam carro, dinheiro, aviões ou helicópteros.

- O que esse cara quer, afinal?

Até os negociadores estavam atônitos com este pedido, um tanto quanto inusitado. Houve uma leve discussão entre os negociadores, diante de tal exigência que por instantes eles não souberam como agir. Alguém cogitou o fato de ligarem para o prefeito. Outros concluíram que não tinha jeito, precisavam prender o homem, uma vez que ele era criminoso.

Cara ou coroa. A moeda. Um emprego. Uma porta. Um paraíso. Rezara todos os dias desde que aprendera falar, agora tinha um inferno a sua espera. Um relógio parado não estava á mão. Os ponteiros desesperados, numa fuga alucinante sem sair do lugar, lhe martelavam as fontes incessantemente. O tic de estourar os tímpanos, e tac de decepar cabeças. Chegava a hora. Não sabia qual era a hora certa, mas chegava. Queria estar em casa deitado na cama dura de papelão no chão. Sentia o frio da morte lhe abraçar. Onde estava o salvador? Onde estava a salvação?

Mais ou menos às quatro horas da manhã, quando tentou fugir pela porta traseira, correndo com a arma na mão, mas foi alvejado com incontáveis tiros. Caiu de joelhos na calçada. Depois tombou com a face no chão, enquanto a imagem final de seus olhos era de calçados correndo para todos os lados. Sirenes. Todo mundo tentava ver o que tinha acontecido com os passageiros que saiam assustados.

Ninguém olhou para seu corpo. Quando o relógio marcou seis horas da manhã, alguém pisou na sua mão, mas ele não sentia nada.

Conto IX

J B Ziegler
Enviado por J B Ziegler em 27/07/2007
Reeditado em 28/07/2007
Código do texto: T581804
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