O dia já ia avançado quando o senhor Waldemar lembrou-se do sonho que teve na noite anterior. Não era dado a sonhos; ou, pelo menos, deles não se recordava. Uma sua amiga afeita aos mistérios da astrologia, sempre disposta a enxergar em qualquer situação uma explicação etérea, misteriosa, afirmara-lhe que sempre sonhamos, ainda que não nos recordemos. O sonho, disse ela por detrás de enormes óculos tartaruga, são viagens astrais do nosso espírito. O senhor Waldemar ficou sinceramente espantado. Ele nunca imaginou que, todas as noites, bastando fechar os olhos, saísse a fazer viagens a sabe-se lá que lugares esquisitos.
Mas agora em sua memória o sonho se delineava claro. Ele sonhara que estava em uma imensa arena, vestido em uma roupa estranha; calças pretas e justas que atingiam pouco abaixo dos seus joelhos, meias de um branco imaculado, sapatos de fivela, além de uma camisa branca, com mangas folgadas, encimada por um colete azul marinho pespontado de lantejoulas brancas. Uma fantasia, concluiu ele, meio acanhado. Um rematado absurdo, não podia deixar de pensar. Jamais em sua vida fora dado a vestir fantasias. Não apreciava festividades como carnaval e outras semelhantes, nas quais as pessoas adotavam certos comportamentos que, ao menos para ele, sempre pareceram ridículos.
Portanto, não podia compreender aquele sonho como um desejo reprimido de fantasiar-se, de liberar certa energia represada, uma alegria inconsciente que os anos de seriedade e disciplina o fizeram relegar a último plano. Não podia, deste modo, aceitar a explicação que lhe dera, no cafezinho do largo Paissandu, o doutor Fonseca, antigo conhecido e médico aposentado da Prefeitura:
‘Este sonho aí é fruto das suas repressões, homem. No fundo, o que você quer é se libertar de certas amarras. Você ficou velho e não aproveitou a vida!’.
Além da extrema deselegância de Fonseca, ao chamá-lo de ‘velho’ – sendo o infeliz detrator da mesma idade que a dele – o senhor Waldemar irritou-se com a soberba do médico, a querer opinar sobre a sua vida, em uma perspectiva tão pessoal. Detestava gente intrometida. Pagou o cafezinho e saiu caminhando pelo burburinho da Avenida São João.
Enquanto caminhava a esmo, outras imagens do sonho retornaram à sua mente. Agora, além da vestimenta esdrúxula, podia ver que não estava em um baile ou em uma festa a fantasia. Estava parado em meio a um largo círculo de areia e tinha nas mãos um grande pano de cor vermelha. A um lado do picadeiro de areia, um touro bufava e arrastava os cascos sobre a areia, levantando pequenas nuvens de poeira.
O senhor Waldemar lembrou-se das matinês da juventude, das tão esperadas tardes de sábado quando, com parte da mesada que recebia do pai, ia ao cinema com seus amigos. Dentre uma nuvem de imagens onde desfilavam Durango Kid, Roy Rogers fixou-se com clareza o rosto forte e moreno de Tyrone Power, vivendo Juan Gallardo, aquele bravo e apaixonado toureiro, trágico em seu combate final com a fera que lhe iria ceifar a vida antes do ‘The End’ que anunciava o fim da matinê. O senhor Waldemar sentiu um arrepio na espinha. Seria o sonho algum presságio de que a sua vida, tanto quanto a do infeliz Juan Gallardo, estava chegando ao fim?
Dominado por este mal estar, o senhor Waldemar decidiu voltar para casa. Tomou o ônibus e sentou-se em um assento rente à janela. Ao passar por uma rua do centro da cidade, o ônibus estacou em um pequeno congestionamento. E então o senhor Waldemar viu. Viu o seu sonho, a imagem por ele sonhada, afixada publicamente em um anúncio posto à porta de um estabelecimento comercial. Uma agência de viagens. Lá estava o desenho de um homem com a mesma fantasia ridícula e, ao fundo do cartaz, a imagem grotesca do ameaçador touro, a bufar, em posição de evidente ataque. Ao pé do anúncio, lia-se ‘Visite a Espanha em doze vezes sem juros’.
O senhor Waldemar já vira vezes sem conta aquele anúncio. Perto da sua casa, outra agência de viagens o exibia com a mesma impudência. Suspirou aliviado, embora não conseguisse tirar os olhos do colorido anúncio. Tamanha era a sua avidez em contemplar aquela cena que o homem ao seu lado, no banco do ônibus, não se conteve e perguntou:
‘O senhor é espanhol?’
‘Não’ – respondeu o senhor Waldemar, sem desviar o olhar.
‘Mas o senhor conhece a Espanha?’ insistiu o curioso.
‘Não’ – disse o senhor Waldemar, olhando para ele, um rapazinho com ar de universitário, esperto e cheio de indagações monótonas.
Deixou o rapaz contemplá-lo com certa estranheza antes de dizer:
‘Mas já sonhei com a Espanha. E lá eu sou um toureiro. Um toureiro!’.
O ônibus sacolejou, seguindo o trafego lento, enquanto a imagem se desfazia na janela.
Mas agora em sua memória o sonho se delineava claro. Ele sonhara que estava em uma imensa arena, vestido em uma roupa estranha; calças pretas e justas que atingiam pouco abaixo dos seus joelhos, meias de um branco imaculado, sapatos de fivela, além de uma camisa branca, com mangas folgadas, encimada por um colete azul marinho pespontado de lantejoulas brancas. Uma fantasia, concluiu ele, meio acanhado. Um rematado absurdo, não podia deixar de pensar. Jamais em sua vida fora dado a vestir fantasias. Não apreciava festividades como carnaval e outras semelhantes, nas quais as pessoas adotavam certos comportamentos que, ao menos para ele, sempre pareceram ridículos.
Portanto, não podia compreender aquele sonho como um desejo reprimido de fantasiar-se, de liberar certa energia represada, uma alegria inconsciente que os anos de seriedade e disciplina o fizeram relegar a último plano. Não podia, deste modo, aceitar a explicação que lhe dera, no cafezinho do largo Paissandu, o doutor Fonseca, antigo conhecido e médico aposentado da Prefeitura:
‘Este sonho aí é fruto das suas repressões, homem. No fundo, o que você quer é se libertar de certas amarras. Você ficou velho e não aproveitou a vida!’.
Além da extrema deselegância de Fonseca, ao chamá-lo de ‘velho’ – sendo o infeliz detrator da mesma idade que a dele – o senhor Waldemar irritou-se com a soberba do médico, a querer opinar sobre a sua vida, em uma perspectiva tão pessoal. Detestava gente intrometida. Pagou o cafezinho e saiu caminhando pelo burburinho da Avenida São João.
Enquanto caminhava a esmo, outras imagens do sonho retornaram à sua mente. Agora, além da vestimenta esdrúxula, podia ver que não estava em um baile ou em uma festa a fantasia. Estava parado em meio a um largo círculo de areia e tinha nas mãos um grande pano de cor vermelha. A um lado do picadeiro de areia, um touro bufava e arrastava os cascos sobre a areia, levantando pequenas nuvens de poeira.
O senhor Waldemar lembrou-se das matinês da juventude, das tão esperadas tardes de sábado quando, com parte da mesada que recebia do pai, ia ao cinema com seus amigos. Dentre uma nuvem de imagens onde desfilavam Durango Kid, Roy Rogers fixou-se com clareza o rosto forte e moreno de Tyrone Power, vivendo Juan Gallardo, aquele bravo e apaixonado toureiro, trágico em seu combate final com a fera que lhe iria ceifar a vida antes do ‘The End’ que anunciava o fim da matinê. O senhor Waldemar sentiu um arrepio na espinha. Seria o sonho algum presságio de que a sua vida, tanto quanto a do infeliz Juan Gallardo, estava chegando ao fim?
Dominado por este mal estar, o senhor Waldemar decidiu voltar para casa. Tomou o ônibus e sentou-se em um assento rente à janela. Ao passar por uma rua do centro da cidade, o ônibus estacou em um pequeno congestionamento. E então o senhor Waldemar viu. Viu o seu sonho, a imagem por ele sonhada, afixada publicamente em um anúncio posto à porta de um estabelecimento comercial. Uma agência de viagens. Lá estava o desenho de um homem com a mesma fantasia ridícula e, ao fundo do cartaz, a imagem grotesca do ameaçador touro, a bufar, em posição de evidente ataque. Ao pé do anúncio, lia-se ‘Visite a Espanha em doze vezes sem juros’.
O senhor Waldemar já vira vezes sem conta aquele anúncio. Perto da sua casa, outra agência de viagens o exibia com a mesma impudência. Suspirou aliviado, embora não conseguisse tirar os olhos do colorido anúncio. Tamanha era a sua avidez em contemplar aquela cena que o homem ao seu lado, no banco do ônibus, não se conteve e perguntou:
‘O senhor é espanhol?’
‘Não’ – respondeu o senhor Waldemar, sem desviar o olhar.
‘Mas o senhor conhece a Espanha?’ insistiu o curioso.
‘Não’ – disse o senhor Waldemar, olhando para ele, um rapazinho com ar de universitário, esperto e cheio de indagações monótonas.
Deixou o rapaz contemplá-lo com certa estranheza antes de dizer:
‘Mas já sonhei com a Espanha. E lá eu sou um toureiro. Um toureiro!’.
O ônibus sacolejou, seguindo o trafego lento, enquanto a imagem se desfazia na janela.