O BOLO DA INFANCIA


Apenas uma árvore, um pé de primavera formara um caramanchão que cobria os dois lances de escada que ligava a rua à porta da sala de minha casa. Já havia se tornado frondosa árvore, em cujos galhos, eu com sete anos de idade me balançava.
Pela imponência que toda escada nos propõe, e a sombra do pé de primavera, aquele local era de certa forma especial, até mesmo disputado certas horas do dia.
Quantas tardes de calor intenso, ou mesmo início de noite, as conversas animadas de adultos e crianças se misturavam. Histórias contadas, experiências de vida trocadas, sempre com a simplicidade e com a singeleza da gente do interior.
Nesta época de minha vida, veio morar em minha casa, a Maria. E como tinha que acontecer acabou sendo incorporada em nossa família, e muito rápido já se tornou minha irmã. Maria era irmã de sangue de minha cunhada, esposa de meu irmão mais velho. Ela morava lá no interiorzão da minha cidadezinha, num lugar chamado Aldeia. Uma única vez em que lá estive, como criança eu adorei o lugar. Depois de percorrer grande distância numa camionete Studbaker da cor marrom, o que para uma criança daquela época era uma façanha inesquecível, caminhei outro tanto pela mata, até o topo de um morro lá no meio da serra, daí comecei a descer por um chão todo plantado, onde pequeninas folhas verdes brotavam da terra branca e arenosa, depois de mais um longo trecho caminhando por entre a plantação, cheguei num ranchinho, com cobertura de palha, paredes de barro, chão de terra, portas feitas com varas de bambu entrelaçadas. As portas, a parede o telhado eram cheios de frestas, como na música.”Num ranchinho beira chão, todo cheio de buracos onde a lua faz clarão”.
Porem, tudo era muito organizado, muito limpo.Tinha: camas, prateleiras, mesa e bancos para sentar, o fogão era feito de barro. Impressionava aquele piso do rancho, parecia não ter sequer pó. As roupas exalavam cheiro de limpeza. Ali morava a Maria com sua família, três pessoas, e quando ela veio pra minha casa, ficaram apenas os dois velhos sozinhos vivendo naquela distância.
Confesso que não entendi muito bem como era viver naquela casa, me parecia algo irreal.
Com tamanha precariedade material, me ponho a imaginar como seriam os pensamentos,os sentimentos das pessoas que vivem ali os seus dias, suas horas, seus minutos, ali no meio do nada. Quando se deitam para dormir, quais seriam suas reflexões, numa daquelas noites em que se perde o sono o que fazer, e quando chove, o medo dos trovões dos relâmpagos e do vento forte. Quando adoecem ou sentem alguma dor. Na noite de véspera de natal, a solidão, a angustia, a tristeza profunda...
As necessidades da alma não se dissipam como as necessidades materiais, elas humildemente se recolocam no final da fila.
Hoje, quase cinqüenta anos depois, vivencio na memória essas lembranças, esses pensamentos, e imagino que assim como eu muitas pessoas procuram um espelho mágico para nele ver os seus vazios.

“Na parede do mundo não há espelho,
Que reflita o belo e ou o feio
Mas há brecha contundente,
Que mostra à alma transparente
O vazio consciente”.

Com a Maria lá em casa, tudo para mim mudou muito, e para melhor, principalmente no tocante a minha alimentação. Para o café da manhã o pão vinha da padaria, era entregue todas as manhãs, mas eu não me lembro de ter visto até então o padeiro. Mas daí pra frente, algumas manhãs eu até ganhava um chineque, pãozinho doce com coco que era uma delícia. Em casa, na hora da refeição a Maria fazia pra mim, o que eu adorava comer e chamava de sopinha, era arroz cosido bem úmido com legumes, também fritava ovos.
Agora, nas manhãs eu ficava na escada sob o pé de primavera esperando o padeiro, até que um dia ele me convidou pra ir na carroça com ele entregar os pães. Com autorização da mãe lá fui eu, não podia nem acreditar que estava naquela carroça, que tinha cobertura como se fosse um toldo revestido de chapa galvanizada, a caixa atrás,onde ficavam os pães, também era revestida para maior higiene. Minha alegria só foi maior, quando dias depois me foi dada a rédea daquela carroça pra guiar. Imagine só, eu guiando a carroça de entregar pães, com cincerro batendo e tudo, muito embora descobri depois que não precisava guiar, segurar a rédea era apenas para fazer pose, pois o cavalo sabia por onde ir, onde parar, até os buracos da rua ele desviava sozinho, e quem lida com animais sabe que isso realmente acontece. Depois da entrega terminada, íamos para a padaria, lá naquela sala onde tinha a vitrine de bolo, doce e pudim. Era a visão do paraíso doce.
Todos os dias quando ali chegava eu ganhava uma grande fatia de bolo, e eu escolhia aquele que tinha o melhor cheiro. Este tinha o recheio de goiabada em calda, a cobertura de clara em neve e coco ralado. Para uma época em que os recursos eram precários para fazer o bolo, ele ficava com a massa um pouco pesada, mas isso o tornava mais saboroso.
Ah, a Maria casou-se com o padeiro, e como não precisavam mais que levasse e trouxesse recados, marcasse encontros, minha alimentação teve uma brusca decaída, e aos poucos fui deixando de ir às entregas de pães, mas aquele bolo, que denominei de bolo da infância, muito alem do sabor delicioso, traz saudades que mesmo com muito esforço não conseguiria relatar. Logo depois desse casamento, os dois familiares da Maria vieram também morar na cidade, e tivemos uma convivência muito feliz. E a infância é mesmo como um bolo, uma mistura de ingredientes que tem os seus sabores, os da família, do lugar, da época, tem o amor como fermento e é adornado pela inocência doce.




Com autorização do Autor:

Paulo C. Rozeto.
Novembro05.