Geladeira

Dava para sentir a água nas mãos. Cada prato que eu lavava, devagar, fazia-me bem. Lavar a louça enquanto minha mãe tirava a mesa ouvindo música era sempre agradável. Ela não me apressava e nem julgava meu trabalho. Apenas permitia que eu lavasse do meu jeito. Penso que todas as pias deveriam ficar sob janelas que dessem para um lugar bonito, assim seria prazeroso lavar louça. Todas as janelas deveriam receber sol da manhã para que a varrição da casa fosse branda e quente. Toda cama também merece a luz do sol para que fosse possível ver, além do lençol flutuando no ar antes de atingir o colchão, aqueles pequenos floquinhos de poeira dançando no ar. Fazer as coisas sem pressa, cuidar de nosso espaço sem pressa e sem pressão é cuidar de verdade, de nossas verdades. Seria tão bom se pudéssemos cuidar de nossas verdades como se fossem nossas e com a certeza de que fossem verdades.

Quando meu pai chamou meu nome lá do portão, eu ainda estava na metade da louça.

- Vai, Ariel. Vê logo o que seu pai quer. Deixe isso aí, vai lá ajudar com a geladeira- gritou minha mãe.

Nossa casa realmente precisava de uma. A que tínhamos em casa era muito velha e estava quebrada pela terceira vez no mês. Meu pai comprou outra de um amigo e queria que eu fosse com ele buscar, a três quarteirões dali. No braço.

- Vamo, Ariel. Vai ter que ser no braço mesmo, anda... Preciso de um cabra forte que nem tu.

Disse sim, subimos a rua, meu pai ainda completou:

- Fico feliz quando vejo você ajudando sua mãe, faz bem... Mas precisa carregá um pouco de peso também. Bora.

A geladeira que ele comprou também era antiga, a base estava bem enferrujada e ela não possuía um dos pés. Meu pai me incumbiu de carregá-la por esse lado, enquanto ele ficava com a parte de cima. Pedia para que eu não a levantasse muito para o óleo não subir.

- Se ele subir, ou a geladeira cair no chão, fodeu tudo. Vamo ter que comprar outra, mas eu não tenho dinheiro, muito menos sua mãe, e aí não se conserva mais nada naquela casa.

Senti a tinta descascada pela ferrugem se esfarelar na minha mão quando segurei na base da geladeira. Tive medo de me machucar. Como poderia cuidar da casa ensolarada com as mãos rudes? Assim não sentiria nada.

- No três a gente suspende, ande. Um, dois, três... Eita!

Era pesada. Descemos a rua devagar, eu tive que ficar de costas para meu pai para poder enxergar o meu caminho, já que ia à frente. Como estávamos em uma ladeira, o peso tombou todo para o meu lado.

- Aguenta firme! Isso...

No final do primeiro quarteirão eu parei e pus a geladeira no chão. Meu pai reclamou, dizendo que eu havia cansado muito rápido. Ficamos na sombra de um muro respirando. Estava muito quente.

- Quando era moleque, eu vivia carregando peso. A gente ia na feira e ganhava uns trocado pra descarregá caminhão. Essa meninada de hoje tem tudo de mão beijada. Vai pra escola, ganha uniforme e até almoço. Chega em casa e fica aí no computador, videogame. Nem calo na mão tem.

Eu fiquei imaginando meu pai calejando os dedos antes da adolescência. Minhas mãos delicadas me traziam culpa. Segurei firme a base da geladeira e continuei a descida. Antes de chegar ao meio do segundo quarteirão, minhas mãos pareciam perfuradas pela base deformada da geladeira, eu queria mãos para criar, não para calejar. O suor descia pelo meu rosto e eu me sentia sufocado na camiseta. Meus pés escorregavam no chinelo. Minhas costas começaram a doer, parei novamente. Direcionei a caminhada para a calçada e posicionei a geladeira no chão com cuidado.

- Mas cansou de novo? Arre!

Meu pai também estava muito suado, mas continuava ereto. Parecia mais vivo com o esforço físico. Tinha as mãos grossas, ossos marcados no corpo, as veias saltadas, tudo numa assimetria que dava a ele uma aparência de combatente. As pessoas passavam e ele, da sombra onde estávamos, levantava a palma da mão e gritava apelidos e nomes. Da sombra dos homens tudo se pode ver. Melhorei. Tirei a camiseta e o chinelo.

- Não tira o chinelo, não, que o chão tá quente. Você não vai aguentar.

Mesmo assim insisti.

- Sabe que teu vô uma vez me deu uma surra, porque entrei em casa com os pé cheio de bosta. Ele me bateu com aquele chicote de batê em cavalo, você não sabe o que é. Não é do seu tempo.

Meu pai vivia dizendo que antigamente ele não usava sapatos. Que sapato era um para todos os irmãos da casa. Minha mãe afirmava e achava graça, pois na casa dela também era assim. Depois do depoimento detalhado sobre a surra que ele levou, eu segurei novamente a geladeira e continuei a caminhada. O chão estava mesmo muito quente. Isso fez com que eu andasse poucos metros e parasse novamente, mas agora no meio da rua, pois não tive tempo de levar a geladeira para a sombra. Meu pai riu:

- Eu falei.

Enquanto vestia o chinelo, alguns cães de rua se aproximaram latindo para mim, impondo seus espaços com a valentia do grito. Eu fiquei com medo de me abaixar para pegar a base da geladeira. Meu pai ainda segurando a outra ponta gritou.

- Chuta eles pra lá! Chuta!

Eu não conseguia, tinha medo de cachorro. Ele sabia disso.

-Chuta, Ariel! Grita com eles!

Meu grito não os intimidava, na verdade nem era um grito.

- Vamo, meu filho!

E sussurrou:

- Vou te falar, viu...

Deixou a geladeira em pé e saiu gritando com os cachorros que sumiram pela rua.

- Você não pode ter medo! Eles percebem! Tem que batê de frente, pô. Vamo, bora.

Levantamos a geladeira. Algumas pessoas assistiam dos bares. Não olhava nem para eles, nem para meu pai.

-Tá doendo a mão?

-Tá sim.

- É que você não tem calo, por isso, aí sente dor mesmo. Calo é bom, ele aparece depois que você sente muita dor, depois de muito tempo mesmo, aí caleja e parece que dói menos, isso é ser homem, meu filho. O calo guarda toda dor que você sentiu até criar um couro grosso que não deixa mais você sentir direito as coisa.

- E isso é bom?

- O quê? Não sentir mais as coisa? Acho que sim...

Depois da pausa continuou.

- Na tua idade eu morava em um barraco de madeira com teu avô e tua avó. A chuva e os bicho da rua entravam na casa como se casa não tivesse; lixo era a única coisa que prosperava. O lixo e o medo que eu tinha. Seu pai tinha muito medo de uma coisa e me esforçava demais pro seu avô não ficar sabendo. Mas aí um dia eu acordei de madrugada com três desses bichos dividindo a cama comigo.

Seu avô ouviu a gritaria e viu os bichos saindo por debaixo das tábua do barraco. Tomei uma surra dele pra calejar os medo. Chorei o que não podia. Pela manhã corri na praça e dormi em um banco. Me sentia vazio. Achava que as pessoas me via assim também, um menino fraco. Não conseguia ser homem. Só fui pro trabalho à tarde. Nesse dia entendi que ser macho é ser gente de calo grosso. Passei vinte anos achando que tinha superado isso. Aí me juntei com sua mãe e ela engravidou de você. A gente morava em um quarto e sala, eu vim com ela porque lá na casa do vô tava difícil. Ele já não batia mais na vó, mas enchia muito nosso saco. A sua mãe demorou pra engravidá de você, o povo já tava falando na minha orelha, dizendo que eu não era homem. Mas aí quando ela tava grávida de você todo mundo ficou quieto e eu achei que já era homem de verdade. Aí um dia a gente tava dormindo, na época a gente não tinha cama, dormia no chão mesmo, e eu ouvi um barulho na casa. Sabia que não era ladrão. Sabia exatamente o que era. Então eu fiquei com o ouvido bem ligado. Sua mãe ainda tava dormindo. Eu achei melhor não acordar, mas não teve jeito. De repente o bichão pulou em cima de mim e andou pelo meu braço. Eu senti até as pata do bicho correndo em cima de mim. Dei um pulo, acendi a luz e passei a madrugada atrás do bicho. Já era homem feito, tinha que matá o inimigo. Sua mãe acordou assustada. Aí eu não pude esconder de sua mãe que tinha medo.

- O senhor conseguiu matar o rato?

- Não. Sua mãe matou.

Ficamos em silêncio novamente.

-Bora...

Pegamos a geladeira e só caminhamos. Não conseguia entender tudo aquilo, mas achava que tinha que suportar. Minhas costas e meus ombros doíam muito. A geladeira estava muito mais pesada. Fiquei pensando em meu pai e sua luta para se tornar homem completo, a ladeira castigava, porque a sua inclinação me obrigava a suportar o peso que cabia a mim e ao meu pai. Quando chegamos em nossa rua, aumentamos o ritmo. Mas no portão de casa deixei a geladeira cair, acho que deixei mesmo. Foi seco o barulho. Ficamos parados olhando ela no chão. Minha mãe da janela também silenciou em luto, sabia da nossa jornada. Ainda com os olhos para baixo, puxando a geladeira de minhas mãos disse:

- Deixe, deixe como tá, é muito peso pra gente... Vá lá pra dentro vá.

Eu fui e ele continuou olhando. Lavava minhas mãos no tanque do quintal, ouvi meu pai chutando forte a geladeira. Dava para sentir o óleo nas mãos.

Gabriel Messias
Enviado por Gabriel Messias em 03/11/2016
Código do texto: T5812076
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