A Polaca
- Vamos brincar lá fora?
Até hoje essa frase ressoa em minha cabeça... Mesmo após tanto tempo, é ela que desperta todas as lembranças daquele tempo gostoso, sem preocupações, em que nos conhecemos.
Era dia de chuva, e eu estava trancado dentro de casa porque minha mãe não me deixava sair de jeito nenhum. “Você vai gripar, Ricardo!”; “Lá fora é perigoso, menino!”; “Não faz isso, Ricardo!”. Era tudo o que eu ouvia dentro de casa, olhando pela janela e sonhando com a vida lá fora... “Mas mamãe não deixa eu sair daqui”, decretava resiliente a tudo o que me era privado.
- Vamos brincar lá fora?
Lembrava de todas as brincadeiras que inventava, atrás da janela: seguia as trilhas da chuva que escorria pela janela, contava quantas pessoas passavam sem um guarda-chuva e se molhavam, contava quantas vezes girava aquele rodinho que limpa os vidros dos carros; vazia desenhos no vidro, embaçado pela minha respiração colada ao vidro. Brincava de fechar os olhos, ouvindo aquele barulhinho de chuva batendo na janela. E sempre ouvindo aquele pedido, cada vez mais tentador de brincar lá fora...
E foi num desses dias de chuva que conheci você.
Você sempre foi a amiga que eu queria ter pra mim; lia sobre você, ficava curioso em te entender.
Era curioso como eu conseguiria ter tanta intimidade com você em tão pouco tempo... E por mais que eu crescesse, que vivesse essa loucura de vida que a gente tem, como você sempre tinha um tempinho pra passar comigo... Foi a melhor coisa que poderia acontecer, com certeza!
Meu pai, sempre com aquele jeito turrão dele, também sabia que você era uma amiga inseparável quando te conheceu. Minha mãe não gostou muito da amizade entre meu pai e você. Chorou muito por longos dias... Mas, enfim, entendeu que a sua amizade era uma coisa boa pra ele, que já não estava muito bem há algum tempo...
Meus outros amigos sempre me falavam mal de você, sabia? Falavam o quanto você era cruel – forte e cruel, na verdade. Mas eu não me importava. Quando conheceram você de verdade também se apaixonaram! E não tinha como não se apaixonar pelo seu jeito de ver a vida, de viver a vida! Todos que te conheciam, sabiam o quanto você era intensa em tudo o que fazia.
- Ricardo, não acredito que você está falando dela de novo...
- Carlos, repara nela! Não tem como não falar! Você sabe que a gente vai...
- Não me lembre disso, cara... Não me lembre...
- Você sempre foge do assunto quando falo dela.
- E tem que fugir mesmo, não? Ricardo, você já está ficando neurótico com isso...
Carlos sempre foi o que mais se negava a te conhecer... Mesmo sabendo de toda sua história comigo, ele se recusava a continuar qualquer assunto que tinha você como um dos temas. Não sabia se era por medo da sua personalidade (sim, ele sempre foi um pouco medroso) ou de se apaixonar perdidamente por você. Nunca vi o Carlos com bons olhos, mas a amizade dele era interessante; ele me fazia pensar em outros caminhos que eu talvez não tivesse coragem de passar – e falo que, com certeza, não passaria se não fosse ele; me desculpe, mas ele, sendo o oposto seu, me ajudou a me equilibrar nessa vida também...
E quando Carlos – enfim – te conheceu, tamanha foi a minha surpresa e a minha alegria por esse dia! Ele sempre sofreu muito, e parece que tinha se encontrado quando vocês ficaram conversando por horas naquele bar, perto da ponte da cidade. Lembra?
- Vamos brincar lá fora?
Eu sempre te via como criança, Tânia... Não tinha como não te ver assim... Te conheci assim! Até a Kátia te conheceu assim. E ela não era das melhores pessoas naquele tempo... Mas se encantou quando descobriu a origem do seu nome... Tânia Smierc. Nome forte, de origem grega. Mas seu sobrenome, da sua família polonesa; por isso, todo mundo te chamava de polaca nas rodas de conversa em que a gente falava de você.
Kátia era aquela amiga Cult que a gente gosta de ter do lado. Talvez por isso vocês duas se deram tão bem. Kátia era inteligente, mas era meio louca por causa de tanto estudar. Às vezes, era até grossa quando falava de alguma coisa; por isso, a gente até achava que ela era meio instável psicologicamente, como o psicólogo do trabalho já disse algumas vezes... Mas a Kátia pouco se importava com isso.
Kátia sempre pesquisava de tudo! Nunca vi alguém tão interessada em aprender igual a ela, viu... Quando ficou sabendo do seu nome, quase deu um pulo da cadeira!
- Ricardo! Adorei o nome dessa sua amiga, viu... Quero conhecê-la!
- Vou marcar um dia lá em casa pra vocês se falarem, pode ser?
- Não... Na sua casa não... Não tenho boas lembranças de lá, você sabe...
- Só por que ela fica perto da ponte, Kátia?
- Você sabe bem o que aconteceu naquela ponte... Não me contrarie...
- Tá bem... Vou combinar um outro local... O que acha do parque da cidade? Lá é um lugar tranquilo... Ideal pra descansar, curtir um pouco de paz e tranquilidade. Você está precisando muito disso, Kátia...
- Ah, pode ser então. Amanhã, às 19h eu estou livre pra conhecer essa mulher intrigante... Me ligue confirmando, Ricardo.
Eu não pude ir no encontro porque passei muito mal na noite anterior, e cheguei a ser internado às pressas pelo convênio. Mas a Tânia já esperava Kátia lá há algum tempo. Fiquei sabendo que as duas conversaram bastante, se sentiram muito íntimas inclusive. Parece que a vida da Kátia era conhecer a Tânia daquele jeito profundo, que a gente nunca espera que aconteça um dia... Estavam perto do lago do parque, um lugar lindo para se descansar de verdade. Amava aquele lugar!
Como estava internado, Tânia veio correndo pra me ver.
- Nossa, Ricardo... Sinto muito por ter ficado longe nesse tempo...
- Sem problemas, Tânia! – era difícil ficar com raiva dela naquela situação... – Aposto que a Kátia te adorou!
- Ela era uma mulher forte, Ricardo... Uma das melhores pessoas que podia aparecer na sua vida, viu? Mas daqui a pouco você vai se encontrar com ela, bobo! E vão conversar de tudo o que sempre conversaram!
- Ah, Tânia... Sei não, viu...
- Vai sim, menino! – ela dizia, com um sorriso iluminado, daqueles que a gente vê em pessoas boas... Quase uma luz no fim do túnel...
Reparei nela e no quanto estava bonita... Parecia saída de um encontro romântico. Perguntei para ela porquê estava tão bem produzida, e ela disse que era pra me encontrar no hospital, pois eu merecia a ver sempre bonita daquele jeito. Achei lindo da parte dela isso...
- Muito obrigado, Tânia! Você sempre foi presente na minha vida... Obrigado por ter sido amiga, e não vilã como muitos a pintaram por aí...
- Não por isso, Ricardo... Mesmo que todos sempre falem mal de mim, um dia também vão me conhecer e saber que sou uma boa companhia pra alguns momentos...
- Disso eu tenho certeza! – e pisquei pra ela, num sorriso maroto que há muitos anos não fazia... Só então, reparei que chovia pela janela toda respingada do quarto em que eu estava...
- Vamos brincar lá fora, Ricardo?
- Agora sim. Agora eu posso brincar lá fora com você, Tânia!
E assim eu fechei meus olhos, e me senti leve. Levantei da cama, peguei na mão da Tânia, e saímos porta afora do hospital, para um lugar lindo em que todos meus amigos me esperavam... Foi assim que parti...
* Dedicado a meu pai, que recentemente conheceu Tânia Smierc, também conhecida como A Morte, devido complicações de um câncer. Obrigado por sempre ter me apoiado em tudo o que fiz, meu pai!