A MORTE DA FLOR
Era Primavera.
Laura estava muito feliz. Tão feliz como jamais se sentira em seus oito anos de idade.
A professora, Dona Amélia, disse para sua classe de segundo ano, que iriam comemorar a entrada da Primavera.
Laura nunca ouvira dizer em entrada da Primavera.
Sabia da existência das quatro estações. Sua irmã gostava de ouvir discos. De música clássica. Daqueles de vinil. Pretos. Reluzentes. E cheios de linhas em círculos. Que ficavam girando. Girando. Girando... Um som envolvente saía da vitrola. Enquanto aquela pequenina agulha entre as linhas dançava. Elegantemente. De ponta de pé. Com a graça sutil de uma bailarina. E Vivaldi, com suas Quatro Estações, alastrava-se pela sala.
A parte que Laura mais gostava era justamente a Primavera!
Ficava bailando pela casa toda. Tocava com um galho seco, sua varinha de condão. As cadeiras e a cristaleira. O sofá e as poltronas de tecido carmim. As cortinas de renda e a maçaneta dourada da porta. E tudo se transformava em flores. Coloridas. Perfumadas. Aveludadas ao toque.
E ela continuava rodopiando. Leve. Feliz. Tudo ao seu redor tomava ares de um grande jardim.
Dona Amélia explicava o que iriam fazer. Seria uma festa para receber a estação das flores. Em gratidão à Natureza. A sua classe teria uma coreografia especial. A dança dos Arcos.
Teriam que trazer bambolês. Enfeitados com flores e fitas coloridas. Para o dia da festa. Fariam os ensaios sem eles. Mas deu um recado importante: Comprem logo os bambolês. Não deixem para última hora. Escolham com calma a cor que mais gostam. Quais as flores que colocarão e as fitas.
Laura já sabia qual seria seu bambolê. Adorava a cor vermelha. Colocaria flores amarelas e rosadas. E folhas verdinhas. Para destacar o vermelho. As fitas para os laços, seriam de organdi branco. Trabalhadas nas bordas. Feito aquelas que sua mãe colocava em seus cabelos. E as que ficariam penduradas seriam de cetim dourado. Seria a mais linda dançarina!
Os ensaios só aumentavam sua ansiedade. Mal cabia em si. De tanta expectativa. Vislumbrava do palco o auditório todo. A música envolvendo tudo. A graciosidade das flores. A leveza das fitas. Tremendo de felicidade. A cada movimento.
A professora elogiava sua dança. Dizia: Menina Laura você dança com a Alma das Flores. E olha que está sem o bambolê. Quando estiver com ele vai ser uma maravilha completa!
Alma de Flores era o sabonete que sua outra irmã adorava. No dia da festa pediria emprestado a ela. Tomaria banho com o “Alma de Flores”...
E estava chegando o dia da festa. Mas Laura não havia dito nada para sua mãe. Sabia que este era um assunto delicado. Por isto retardava ao máximo a conversa. Para piorar tudo. Dona Amélia perguntava: Quem já comprou os bambolês? Todas as suas colegas levantaram as mãos. Menos ela. “E você, Laura?” Ao que ela respondia: Vou providenciar, professora. Mas bem no fundo ela estava com medo.
Talvez se falasse com seu pai. Se pedisse a ele que trouxesse o bambolê vermelho. Escondido. Mas esconder onde? Desta vez não caberia debaixo do chapéu. Como fazia com os doces proibidos.
Laura estava ficando exausta. Não havia outro jeito. Teria que falar com a mãe. Mesmo porque depois precisaria de sua ajuda. Para enfeitar o bambolê.
No dia seguinte Dona Amélia veio falar com ela em particular: Laura, minha menina Laura. Você ainda não providenciou o bambolê? Amanhã vamos ensaiar com eles. Só falta você. Dê um jeito de arrumar um. Se não pode comprar. Trago um pra você. A festa é depois de amanhã.
Laura sabia que a questão não era o dinheiro para comprar. Mesmo que Dona Amélia trouxesse o bambolê. Ela teria que levá-lo para casa para enfeitar. Seria pior!
Teria mesmo que dizer a verdade. Era isto que aprendia na Escola Dominical. Ouvia o pastor pregar: E disse Jesus, “Eu Sou o Caminho. A Verdade. E a Vida”. Sim.
Laura decidiu enfrentar a mãe. Falaria rápido o suficiente. Sabia até a loja onde estava seu bambolê vermelho. As flores pegaria na floreira de casa. As fitas estavam no estoque dos aviamentos de costura da mãe. Daria tempo de tudo.
A mãe estava preparando um bolo para o lanche da tarde. Batia a massa. Laura se aproximou com cuidado. Quase gaguejando disse: Mãe, me compra um bambolê?
Subitamente a colher de pau, cheia de massa, deu um pinote. Caiu sobre o fogão. Que já estava limpíssimo.
A mãe num susto inexplicável berra: Quê? Olha o que você fez, menina! Sujou tudo! Só falta me desandar o bolo. Eu ouvi direito? Quer um bambolê? Virou puta? Vai rebolar pros meninos? Quê está acontecendo por aqui, meu Deus? Está às voltas com as coisas do demônio?
Enquanto a mãe limpava a massa derramada Laura tentava explicar: Não seria para mim, mãe. Nem bem acabou de dizer isso e ouviu: Ah! É pra quem, então? Pra mim?
Mas a verdade veio logo em seguida numa golfada só. Seria para a dança das flores na escola para a entrada da Primavera.
A mãe engasgou com a liquidez do julgamento sobre o que ouvia: Meu Pai Celeste, onde foi que pequei? Como assim? Dança? Que barbaridade é essa? Filha minha numa gafieira, num bordel, numa boate? No meio de gente do demônio. NUNCA! Nada de bambolê! Nada de dança! E amanhã antes da esbórnia desse ensaio, vou te buscar na escola. Antro de perdição. E sai da minha frente. Agora! Vai pro quarto. Vai ler a Bíblia. Assim Satanás sai do seu coração. Cheio de pecados!
E o bolo. Desandou.
Laura flutuava. Não havia chão debaixo dos seus pés. Cansados daquele caminho íngreme. Pedregoso.
Tinha dito a verdade. E a verdade a libertara. Dos sonhos. Das fantasias.
Dos encantos da Primavera.
As fitas brancas e douradas repousavam. Fechadas. No fundo da gaveta.
Foi até a floreira.
Não havia nenhuma flor.
Mírian Cerqueira Leite