A alcunha de Matias

Na década de 1970, só havia uma rádio AM na cidade. Contava-se nos dedos as casas onde havia um aparelho de televisão em preto e branco. Mesmo assim, todos estavam satisfeitos com a avançada tecnologia que a cidade contava no momento. As brincadeiras dos meninos nas ruas se limitavam às bolas de gude, alguma peteca, correrias e os jogos de dama em tabuleiros feitos a risco de giz ou carvão nas calçadas cimentadas.

Muita gente de fora veio em busca dos prazeres que as praias ofereciam. Vinham por ouvirem falar dos atrativos da ainda debutante Canoa Quebrada. Os gringos não trouxeram só maus costumes e degenerados hábitos urbanos, com alguns deles vieram também práticas fidalgas de grande desenvoltura e satisfação intelectual, como é o caso da milenar prática do jogo de xadrez.

Numa das praças da torta rua grande, certa manhã de domingo, um gringo suíço conhecido por Mark, de grande estatura e cabelão a rabo de cavalo, montou um tabuleiro com vistosas peças em madeira de um jogo diferente. Eram mimosas figuras esculturadas que davam gosto serem observadas por nós meninos pela primeira vez. Os soberbos reis com suas severas cruzes sobre as cabeças, as majestosas damas coroadas, as imponentes torres, os bispos serenos, os cavalos com ares de trotadores e os peõezinhos implacáveis e suicidas. Todo aquele cenário era um convite a novas aventuras bélicas para mim e os outros garotos. O gringo pegava numa peça e a colocava noutro lugar ou no local de outra, retirando a que ali estava. Parecia confuso, era bem diferente do movimento do nosso joguinho de dama. O estrangeiro jogava com uma bela moça nativa, morena da praia, sua companheira. Algumas pessoas da cidade comentavam que o suíço era um sujeitão de família rica, e que deixara a Europa para vir viver no nordeste do Brasil por causa do eterno clima de verão que há por aqui. Censuravam-no, porém, pelo fato de ele viver com uma negra praieira e analfabeta.

O homem havia comprado um dos antigos casarões da histórica Aracati, e ali aparecia poucas vezes ao mês. Usava seu tempo entre a praia, viagens às outras capitais para palestras e eventos ligadas às artes em geral, principalmente cinema. Era homem refinado, exótico, envolto em certo mistério, fumava cachimbo e tocava um rabecão chamado de cello, e era tido por cético. Diziam que ele dominava várias línguas, e só faltava alguém afirmar com certeza que o vira parlamentando com um anjo celeste no idioma deste.

Lembro-me do dia em que ele se dispôs a nos explicar as regras do desconhecido jogo. A coisa era confusa porque estávamos acostumados aos repetitivos movimentos da dama e foi duro entender os movimentos do cavalo e suas capturas. Aprendemos as manobras, o gringo nos deixava brincar com suas caras peças em sua presença. Prometeu nos doar um tabuleiro de plástico para a nossa prática e cumpriu com a palavra. Foi daí em diante que começamos os nossos jogos de xadrez nos fins de tarde nas sombras das árvores da velha praça central. A princípio, o tabuleiro era de todos, mas como estávamos fascinados pelo jogo, combinamos que ele devia ficar na casa de cada um de nós uma noite. Aquela democrática ideia gerou certa disputa extra entre dois dos neófitos mais exaltados.

Devido ao meu lado conciliador, deixei para ficar com o tabuleiro quando este já estivesse sido levado por todos. Assim, sempre que possível eu aparecia por lá para me aventurar numa partida. Éramos todos do mesmo nível a princípio, mas como acontece nas artes e ciências, sempre aparece um talentoso e que passa o dominar a coisa com mais rapidez e desenvoltura. A rivalidade maior se deu quando, o mais briguento do grupo, o Matias, por ser o mais atlético nos jogos de bola e nas correrias, começou a perder para o raquítico Airtinho, tido por lerdo e apático. Durante as partidas, nós fazíamos uma roda e víamos de perto como era que cada um jogava e, se alguém cometia uma infração todos opinavam corrigindo. Para as nossas dúvidas maiores recorríamos ao mestre suíço quando ele vinha ao casarão.

Aconteceu que o entroncado tagarela Matias não se convencia de perder várias vezes para o Airtinho, que era caladão, pálido e de olhos miúdos. Certa vez, inconformado com o xeque-mate, gritou e xingou com termos escabrosos o inofensivo rapazote. Este assustado, ficou como que hipnotizado e nem reagiu. Aquilo foi inesperado para nós também. Eu e parte dos outros não gostamos do escândalo do valentão. Ficamos a favor do legítimo ganhador, e o Matias fez escarcéu, quis brigar e disse que desafiava qualquer um de nós para sair na porrada com ele, e que ele não tinha medo de ninguém ali. Ao ouvir a gritaria na praça, um senhor vidraceiro que trabalhava do outro lado da rua se chegou até o local e falou para a gente acabar com aquele jogo e aquela discussão. Obedecemos ao homem e paramos com o jogo naquela tarde, mas a decepção foi grande e geral.

Depois voltamos à mesma frequência, porém notamos que o Airtinho não mais aparecia na praça para jogar. O homem vidraceiro foi contar aos pais dele o que viu, e aqueles devem tê-lo proibido de estar em nossa companhia. Já o grosseiro Matias continuou mais atrevido do que antes, se julgando o tal nos jogos de bola e se achando o vencedor em tudo. Foi então que resolvemos boicotá-lo no nosso jogo de tabuleiro. Como protesto, nenhum de nós jogou mais com ele, e isso o irritou mais ainda do que quando perdeu seguidamente para o Airtinho.

Certo dia o brigão Matias apareceu na praça e nós estávamos aprendendo uns lances táticos com o suíço Mark. Sem dar muita importância ao que o gringo nos explicava com o seu linguajar enrolado, o mal-educado Matias foi chegando e com estardalhaço disse que desafiava o Mark para uma partida, já que nós, os meninos molengas da rua tinham medo de apanhar dele. O gringo parou, ficou atento ao que ele dizia, o encarou com serenidade e disse que jogava com ele sim. Mark já sabia que aquele era o atrevido metido a besta da nossa turma. Foi então que perguntou e todos nós ouvimos a pergunta dirigida ao Matias pelo estrangeiro. Que jogava com ele, mais havia uma condição e o suíço falou: nessa partida te darei a dama de vantagem, se ganhares de mim, te darei também o meu tabuleiro de madrepérola com todas as peças, porém se perderes, prometes que não vais te zangar quando os teus colegas te chamarem de Matias Pato? Todos rimos gostosamente quando o gringo fez aquela proposta. Aquilo já era suficiente para a gente marcar com aquela alcunha o mau desportista.

Hoje, vários anos depois desse episódio, o Matias continua o entroncado de sempre, é carreteiro no mercado. Tenho pena do coitado quando carregando pesados sacos entra no portão do armazém e algum gaiato azucrinador começa a imitar os grunhidos do pato Donald e fanhosamente grita pelas costas do Matias alguma coisa como pato, ou pé chato. O coitado mesmo carregando pesado fardo ainda retruca que pato é a puta que pariu. Lembro da origem do apelido chiclete e mais ainda do final da partida de Matias com o suíço Mark. O xeque mate de peão, dizem que é o mais humilhante que um enxadrista pode sofrer e isso aconteceu com o rei que Matias defendia. Pior que a perda da partida, porém foi o pejorativo nome de perdedor que ele por ser duro na queda tem de carregar agora por toda a vida, a menos que ele se mude para um lugar distante onde ninguém o conheça.