A MENINA QUE NÃO SABIA COLOCAR AZEITE
Estou só.
Mas é uma solidão que me faz companhia desde sempre.
É estranho porque mesmo quando ando pelas ruas, no meio da multidão de pessoas, me sinto particularmente só. Tão só a ponto de nem recordar os mesmos rostos. De todos os dias quando vou para o Metrô.
Minha solidão foi desenvolvida na ponta dos meus dedos. Bem antes de ter noção de mim mesma. Tive que abrir-me em solidão. Assim como abro agora a porta de casa.
Se tem uma coisa que nunca passa é minha fome. E hoje é dia de cozinhar um feijão com arroz. E eu mesma tenho que fazer. Moro sozinha. Não tenho quem faça.
Aprendi fazer comida com ela “a dona da pensão”. Eita comidinha sem sal nem açúcar. Mania de natureba. Pouco óleo. Um nada de sal. Tempero, nem em sonho. Minha mãe não cozinhava, fazia o grude.
Detesto escolher feijão. Ligo o piloto automático e meus pensamentos viajam sozinhos.
Em câmera lenta.
Vejo a cozinha da casa de meus pais. À mesa estamos almoçando. Meus irmãos adoram a iguaria. Se esbaldam. Mas eu não!
Resolvi colocar azeite no meu arroz. Estava seco demais. Nesse instante minha mãe segurou meus dedos que mal acabavam de pegar a lata.
A criatura me olhava com aqueles olhos. Que reluziam como fogos de artifício. Estalavam suas farpas pra cima de mim.
Num vozeirão de acordar seres do infinito disse: Não está boa a comida? A madame não aprova? Então vamos regar com um pouco mais de sabor.
Pegou uma xícara no armário e encheu de óleo.
Apertando meus olhos pude ver que ela não estava colocando azeite. Era caro. Colocava óleo de soja.
Veio até mim. Difícil sustentar aquele olhar de olhos que ardiam.
Deu a xícara para mim com uma ordem seca e direta. “Beba!”
Todos já haviam acabado de comer. Saíram da mesa. Eu fiquei.
Aquilo não descia. Sentia que ia vomitar. Mas era perigoso. Eu já sabia o que poderia acontecer. Ela me faria comer.
Estávamos sozinhas ali. Eu e a xícara de óleo.
Tapei o nariz e engoli de uma vez. Fiquei tonta. Meu estômago gritava. Se retorcia. E eu xinguei um xingo untado de ódio. Mas meu irmão espiava atrás da porta da cozinha. Ouviu. Levou pros ouvidos dela.
Feito um tornado avançou em minha direção. Daquela boca cinza saíram as palavras mais destruidoras. “Sua folgada. Ainda tem coragem de xingar quem põe comida no teu prato? Você é um aleijão na minha vida.”
Usou as costas da mão para estapear minha boca. Tinha anéis naqueles dedos cheios de nós. Que bateram. Repetidamente impiedosos nos meus dentes. Nas minhas gengivas. Nos meus lábios.
Doía muito. Sentia um gosto de ferro no canto da minha boca. Ferro líquido. E vermelho. Abaixei a cabeça. Chorei. Sozinha.
Hoje, percebo que minha boca nada diz porque as palavras não aprenderam a dizer coisa com coisa.
Minhas lágrimas matam a sede da minha alma. Desesperançada de outras expressões.
Então é isso. Falo comigo. Enquanto cozinho.
Falo sozinha. Quando estou em casa.
Sou sozinha!
Mírian Cerqueira Leite