O Caso do Nérsô

Já eram 9 da noite, eu acabara de jantar e brincava alegremente com meus filhos quando o telefone toca. Isso bastou para alterar o meu humor. Afinal, tinha tido um dia cansativo, com várias cirurgias e ainda estava de plantão à distância. Seria do pronto socorro ? Era !! O residente de cirurgia, com uma voz alegre e feliz me diz:

professor, tem um paciente aqui com abdome agudo perfurativo, tá prontinho pra ser operado, posso ir levando ao centro cirúrgico ?

A alegria do residente era justificada pelo fato de estar seguro do diagnóstico, e pela oportunidade de poder operar. Eu, naturalmente tendo que me deslocar para o hospital e acompanhar o futuro cirurgião, não poderia ter o mesmo entusiasmo, mesmo porque, mais uma vez, deixaria meus filhos para ir trabalhar.

Assim, com uma voz de quem quer resolver as coisas o mais rápido possível, perguntei-lhe:

O pré-operatório está OK ? então sobe pro bloco cirúrgico que eu já estou indo. No caminho, fui pensando, deve ser uma úlcera perfurada, em 30 minutos a gente resolve e logo estarei voltando.

Ao chegar ao centro cirúrgico o paciente já estava deitado e com o anestesista à sua volta preparando os procedimentos de rotina enquanto os dois residentes olhavam o raio x no negatoscópio.

Aproximei-me e perguntei. Do que se trata ? Edgar, um dos residentes, seguro do diagnóstico disse: Mestre, o paciente tem dificuldade para expressar-se e dar muitas informações e veio transferido de outro hospital, mas segundo a enfermeira que está acompanhando, há 3 dias iniciou com dor abdominal, que veio aumentando de intensidade, sendo que hoje surgiu febre. Nada mais sabem informar.

Perguntei-lhes, e o exame físico ? Os dois residentes me olharam com ar de sarcasmo e disseram: estado geral excelente, funções vitais ótimas e abdome doloroso, globalmente mesmo à palpação leve. Enfim, um abdome cirúrgico.

• E quando ao RX ?

• Tem esses pequenos níveis hidroaéreos.

• E qual o diagnóstico de vocês ?

E em uníssono disseram.

• Úlcera perfurada !!

Passei a questionar e perguntar por outras hipóteses e finalmente disse:

Com 3 dias de evolução, a quantidade de ar no abdome deveria ser muito maior, com essa quantidade discreta, temos que pensar em perfuração intestinal, e mais provável ainda, de delgado. Vamos tentar esclarecer pela história clínica:

• Qual o nome do paciente ?

• Nelson

Aproximei-me da cabeceira da maca e olhei pro rosto do Nelson, e evidentemente, nos vimos com o rosto invertido.

Nelson olhou-me com um sorriso daqueles de quem não está nem aí. Cabelos lisos e marrom, com franja cobrindo toda a testa, como a de uma colegial adolescente. Então eu disse:

• Boa noite

• Bánoite

• Tudo bem ?

• Tudo bem

• O que aconteceu com o senhor, seu Nelson

• É Nersô! Meu nome é Nersô. Dei uns tiros no exército, perdi um parafuso e não achei até hoje.

Somente então entendi o sorriso sarcástico dos residentes, que então me disseram, que ele viera do hospital psiquiátrico, tendo 40 anos de idade e estava lá desde os 18 anos de idade. Estava servindo o exército e “descompensou". Desde então está internado.

Diante dessa situação, decidi entrar no mundo dele, perguntei !

• É mesmo ? E no exército você era um bom atirador ?

• Eu era ?

• Acertava tudo ?

• Acertava tudo !!

• E você era soldado ?

• Eu era soldado

• E onde você mora agora ?

• Moro no hospital

• E quando sair do hospital, você vai pra onde ?

• Eu vou pro exército

• E quando será isso ?

Nelson olhou com um ar de interrogação, pensativo e não respondeu.

OK! Gente, sem história, vamos operar … Vamos fazer uma incisão mediana pouco acima da cicatriz umbilical, e depois decidimos se prolongaremos para cima ou para baixo.

Após os procedimentos de rotina, descobrimos que havia uma perfuração do intestino delgado, junto ao ceco e com uma pequena necrose.

Dentro da alça intestinal, havia um “saquinho de plástico duro de doce de leite”. Ele havia comido um daqueles saquinhos plásticos de doce de leite, mas havia engolido também o saquinho.

O plástico perfurara o intertino delgado e havia uma área com necrose.

Após a cirurgia, Nersô foi para a enfermaria e antes mesmo de sairmos do hospital o enfermeira anunciou no alto falante:

Atenção cirurgia, comparecer na Ala B. Voltamos para lá.

• O que houve ?

• Doutor, o seu Nelson arrancou o soro.

Conversamos com o Nersô e explicamos que não poderia nem deveria retirar o soro, e fomos embora.

No dia seguinte, ao visitá-lo a enfermeira disse: Doutor, ele arrancou o soro umas 3 vezes de madrugada e agora cedo arrancou a sonda nasogástrica.

Entramos no quarto e mais uma vez, explicamos, pacientemente que ele não deveria retirar o soro, porque estaria de jejum, necessitava remédios, e etc..

Cerca de uma hora depois, a história se repetiu ! O Nersô, arrancou o soro novamente. Eu disse aos residentes, bem vamos entrar no mundo dele novamente, deixa comigo. Então, com uma ideia clara e de quem se sente um médico com muita experiência, entrei no quarto rápido e demonstrei estar bastante ofegante ! Nersô me olhou com ar de interrogação e fui logo dizendo:

• Nersô nersô, a coisa ta feia pra' você !!

• A coisa ta feia pra mim

• Você não sabe o que aconteceu !! O Coronel já está sabendo !!

• O Coronel já está sabendo

• É o seguinte Nersô. O Soldado falou pro Cabo, o Cabo falou pro Sargento, o Sargento falou pro Tenente, o Tenente falou pro Capitão, o Capitão falou pro Major, o Major falou pro Coronel e o Coronel já está sabendo que você está arrancado o soro. Todos no exército já estão sabendo. E o Coronel quer vir aqui prender você.

Ele me olhou com olhos arregalados parecendo que havia entendido o perigo que corria. Me aproveitei da situação e disse:

• Eu falei pro Coronel que sou seu amigo e que viria aqui falar com você, e que não era pra prender você. Por isso eu estou aqui. E sabe o que o Coronel disse ?

E com ar de vitorioso sentenciei:

• O CORONEL DISSE PRA VOCE TOMAR SORO ATÉ AMANHÃ CEDO ! O que eu digo pro Coronel ? Você vai tomar soro até amanhã cedo ou ele vem te prender ?

Demonstrando entender o perigo que corria ele disse:

• Eu vou tomar soro

• Ótimo, então vou avisar o Coronel que ele não precisa mais vir aqui te prender.

Sai com ar vitorioso, me vangloriando e ainda disse aos residentes: E aí ? Gostaram ?

Durante o dia e o durante a noite nada ocorreu. Fiquei feliz com a minha atitude e de me sentir o senhor sabichão, espalhando a minha astúcia aos quatro ventos

Na manhã seguinte entro no hospital e vou logo perguntando pra enfermeira:

• E o Nelson, como está ? passou bem ?

• Doutor, ele passou bem, mas agora cedo arrancou o soro novamente.

Senti-me um pouco frustrado e fui ao quarto dele, entrei e falei

• Nersô !!!! Você arrancou o soro de novo ? Porque você fez isso ?

Ele me olhou com ar de orgulho e vitorioso e sentenciou:

• O Coronel mandou eu tomar soro até hoje cedo !!

Claro, tive que sentar na cama de tanto rir, socando minha cabeça seguidamente e dizendo pra mim mesmo: burro, burro, burro !!!

Obs: História verídica que ocorreu em 1985 no Hospital de Base de Bauru.