VIDA DE VIAJANTE

Não eram seis horas da manhã e eu já estava sentado na segunda boleia do caminhão misto que ia me levar até Piracuruca no interiorzão do Piauí.

Fiz questão absoluta de sentar logo atrás do motorista porque é bem melhor receber a nuvem de poeira na cara do que sentir o cheiro nauseabundo daqueles feirantes que, fatalmente, seriam meus companheiros de viagem.

Gente pobre, geralmente suja, mas que gosta de agradar, de conversar mesmo que nunca tenha visto o cabra sentado “de junto” nesses caminhões que levam de tudo numa viagem só.

Até mudança junto com garajau de galinha, marrã amarrada pelo sovado, jarra de barro, ancoreta de cachaça, cabrito novinho ou ovelha deslanada com cria ao pé cabem na carroceria, aonde também vão uns cabras que gostam de fumar aqueles cigarros de palha de milho que fedem mais do que penico servido.

Sentada junto de mim, ia uma mulher com vestido de tafetá verde alface, carregando um brugelinho que só tinha couro e osso.

O bichinho não tinha força nem para chorar de tão ruinzão que estava. Ia levá-lo para a casa da madrinha, que era mulher de posse, e podia pagar a consulta para ver se o médico dava jeito dele se criar.

De Terezina até Piracuruca hoje em dia se faz em menos de duas horas, mas naquele tempo, naquele caminhão, foi o dia todo rodando por dentro dos sítios, entregando e pegando mercadorias, subindo e descendo gente.

Cada vez que passava numa dessas barracas de estrada, o motorista descia e tomava uma lapada de aguardente para limpar a poeira da garganta.

Eu também desci numa dessas e tomei uma coca-cola quente feito as portas dos infernos, tirada da prateleira coberta de pó. Era ruim, mas achei melhor do que beber a água daquele pote de boca amarrada com um pano todo manchado e cujo caneco de flandres usado para tirar a água lá de dentro, estava todo enferrujado e faltando algumas daquelas peças afiadas para evitar que o sujeito use-o como copo.

Cada vez que o caminhão parava, uma leva de gente vinha vender uns brebotes “de comê” alguns ainda quentes, outros duros como pedra, como a bolacha de canela que eu inventei de comprar e que quase me quebra o dente.

Final do dia, quando chegamos fui me hospedar na pensão de dona Santa, mas para meu desalento a pensão estava lotada.

Por causa da feira no dia seguinte, até as redes avulsas que ficavam armadas na sala da frente, já estavam todas alugadas pelos comerciantes que não tiveram a oportunidade de alugar um quarto com as camas Gerdau – da faixa azul – com colchão de palha já amaciado pelos muitos anos de uso e alguns deles com a baixa bem pronunciada no meio, quase um buraco, por causa das mijadas que as crianças davam durante o sono pesado dos inocentes.

Depois de muita lamentação com voz de choro, dona Santa me ofereceu uma vaga no quarto que ficava lá no fundo do quintal, junto com dois vaqueiros da fazenda do Cel. Felinto.

Claro que eu aceitei na hora.

Aí a dona Santa me alertou que podia ser que eu não dormisse direito por causa da zoada dos animais que estavam no quintal porque podiam se estranhar e sair briga entre eles.

Depois de comer angu com galinha e tomar um café ralo, frio e fedorento, dona Santa me entregou um candeeiro de querosene com a caixa de fósforos e um pedaço de pau para eu me defender dos bichos.

De fato além do cavalo alazão do Coronel, tinha uns dez ou doze animais entre burras e jumentos de carga.

Na varandinha, na frente do quarto, estavam empilhadas as cangalhas e os caçuais usados no transporte das mercadorias e os arreios pendurados na corda longa amarrada nos caibros do telhado baixinho.

Dentro do quarto além das três camas, cada uma com seu penico, tinha um pote com a tampa de madeira com os copos de plástico em cima e o caneco de flandres, esse felizmente, estava limpo e brilhando sob a luz mortiça do alcoviteiro.

Não sei se pelo cansaço ou porque o estômago estava cheio, mas eu dormi tranquilo até quando o galo danou-se a cantar enquanto ciscava as bostas dos animais junto com as galinhas e o bando de pintos já taludinhos.

COMUNICADO

Quem me contou essa história, verídica nos mínimos detalhes, foi o hoje Representante Comercial e Consultor José Ricardo Brito de Araújo, homem valente e destemido (se não tiver assombração nem alma penada por perto), que desde a mocidade enfrentou as agruras da vida de Vendedor Viajante no sertão nordestino e o mínimo que eu poderia fazer era contar para todo mundo como homenagem a esse amigo, quase, meu irmão.

GLOSSÁRIO:

Ancoreta – espécie de barril pequeno para transporte de líquido feito de madeira ou borracha de pneu.

Brebotes – comidas sem requinte, miudezas, coisas insignificantes.

Caçuais – o mesmo que garajau.

Cangalhas – artefato semelhante à sela usado em animal de tração para transporte de carga

Deslanada – espécie de ovino sem lã.

Garajau – cesta de vime ou de varas própria para transporte de animais.

Marrã - porca (leitoa) antes da primeira cria.

Uns cabras – homens, no contexto.