A MENINA QUE MOSTROU O DEDO DO MEIO

Puxa vida! Bem que desconfiava que hoje seria um daqueles dias. Em que a gente nem devia ter saído. Estava voltando pra casa quando antevi uma briga eminente. Dois caras. Dois carros. Parados. Abriram as portas e saíram. Pensei: Vai dar merda!

Um dos caras era gordo. Lustroso e suarento. O outro tinha olheiras aprofundadas numa cara deletada da vida. Magro até os ossos. E foi ele que mostrou o dedo do meio para o “polar bear”. Percebi que havia uma risadinha escondida no canto dos olhos dele.

Nem esperei pra ver o desfecho. Corri pro meu aconchego. Me sentia mais sozinha do que sou. No meio do nada. Que chamo esta minha vidinha.

Uma lembrança fervendo minha cabeça.

Estava em casa. Na sala. Tinha ligado a TV. Mas isso era uma proeza que não me competia. Era proibida de ligar o tal aparelho. A fulana de tal, que se dizia minha mãe, havia dado esta ordem.

Porém eu estava sozinha. E uma vontade louca de assistir qualquer coisa que fosse. Adoro TV.

Minhas mãos de 12 anos se apressaram em apertar o botão. Ninguém à vista. Mas não.

Ela surgiu do nada. Como sempre. A detetive “Holmes”. Partiu pra cima de mim com aqueles olhos duros. Que perguntavam secos: Quem mandou ligar a TV? É você quem paga a conta da energia dela? Vamos, sua perdulária, responde? E buzinava na minha orelha. Tocando terror.

E me lembro que havia passado anos sem pôr a minha mão na TV. Mas ela deixava os outros três filhos dela à vontade. Para ligar. Assistir. Desligar. Quando bem quisessem. E eu não. Por quê?

Virei as costas. Saí dali cuspindo fogo. De ódio. Raiva. Sei mais lá o quê!

Entrei no meu quarto-refúgio. Fechei a porta. E mostrei o dedo do meio pra ela.

Não deu nem um segundo no raio do relógio. Ela manda seu dedo-duro do “Watson” me chamar. Meu irmão havia visto o que fiz. Era um exímio informante do mundinho familiar. E como bom delator foi lá e fez seu trabalho.

Ela me mandou entregar uma das mãos. Entreguei passiva. Começou a torcer o meu dedo do meio. Para o lado das costas e não da palma da mão. Torcia tanto que pensei que ia quebrar. A dor passou como uma fumaça por cima da minha cabeça. Asfixiando meu pensamento. Não tinha como escapar dali. A única coisa a fazer era deixar acontecer. Nossa! Como doía!

Minha camiseta rosa grudava meu choro em forma de suor.

Quando acabou. Meu dedo morreu! Não se mexia. Não respirava. Estava pálido e gelado.

Por muitos dias as cores faziam suas transformações alquímicas. Sobre meu dedo. Iam do vermelho ao roxo. Do roxo ao verde garrafa. Até o amarelo encardido.

O que ficou foi uma dor descolorida. Que minhas células retiveram em suas memórias. Saí dali e fui velar meu destino.

Fecho a porta da minha casa. Deixei lá fora aqueles dois.

Aquela imagem era real. Não de uma TV. Queria desligar a visão que tive. E eu não queria ver mais nada. Mas ouvi. Um estampido curto.

Talvez o cara do olho seco não tenha só o dedo do meio torcido pelo gordote. Mas estejam lá estendidos. Ele e o seu dedo. Pálidos. Gelados.

Mírian Cerqueira Leite

Mileite
Enviado por Mileite em 21/10/2016
Código do texto: T5798625
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