A MENINA QUE NÃO SABIA A TABUADA
Cheguei esbaforida em casa. Se não bastasse o peso das compras carreguei também o peso da preocupação. Este mundo está cheio de pessoas do mal. Pessoas que querem passar a perna nos outros. E naturalmente vivem dando rasteiras em mim. Tipo colocar preço mais alto num produto quando passam pelo caixa. Nem consigo acompanhar a moça do caixa no supermercado. Ela vai digitando e é tão rápido que quando começo a ler... Já é outro produto. Outro preço. E pior que isso? Cobrar o preço total e pedir mais dinheiro para facilitar o troco. Não entendo isso. Nunca entendi. E sabem por quê? Porque não sei fazer contas. Nem de menos e nem de mais. Nem de dividir e nem de multiplicar.
Espalho estas moedas na mesa. Esse dinheiro todo amarrotado. Notas variadas. E amassadas de tanto socar na carteira. E de qualquer jeito. É o jeito que dá.
Sei que sou atrapalhada com grana. Olha aí. Já estou vendo que está faltando. Conto. Reconto. Cada vez é um resultado diferente.
Ai! Minha cabeça dói, até. Por falar em dor, pipocam lembranças na minha mente.
Estávamos no carro. Em viagem para algum lugar. Eram as férias da escola.
Meu pai dirigia e minha irmã mais velha ia ao lado dele.
No banco traseiro íamos minha mãe, meus dois irmãos mais novos. E eu que ficava bem atrás do banco do motorista.
Enquanto dirigia, meu pai me fazia repetir as tabuadas. E queria que fosse rápida. Mas eu queria ver a paisagem que passava depressa pelos meus olhos de sete anos de idade. E parava de pensar em tabuada. Ficava muda. E olhava.
Árvores coloridas de flores. Cabritinhos com suas mães. Bois pastando calmamente.
E o que dizer das nuvens... Cada momento uma forma diferente. Pareciam ursinhos, cavalinhos, leõezinhos. E tudo feito de algodão. Brancos. Cinzas. Azulados. Conforme o sol se escondia atrás deles. Mudavam de cor.
Um espetáculo. Imperdível. Eu me espremia contra o vidro da janela do carro. Parecia que ia alcançar, com minhas mãos, aqueles animais tão cobiçados por mim.
De repente senti uma espetada aguda. Uma nuvem pálida tapou toda minha visão. Era o infernal que me cutucava. Para me acordar do meu deleite. E ele beliscava de fininho na batata da minha perna. Usava a mão esquerda para os beliscos. A direita ficava nervosa ao volante. E beliscava doído, que só! Numa manobra mais arriscada, para alcançar minha perna, ele se desequilibrou.
O carro rodopiou. Rodopiou mais uma vez. E outra vez. Foi difícil controlar aquilo. E ele conseguiu à duras penas! O carro parou. Todos saíram. Apavorados. E eu tentava sair pela porta do motorista. Neste momento um dragão cuspindo fogo pelas ventas me arranca do carro pelos cabelos. Vociferando: Sua maluca desgovernada! Olha o que você fez. Sua demente! Quase morremos todos aqui. E a culpa é sua!
Ouvia os gritos da minha irmã. Ela berrava com toda a força de seus pulmões. Para que meu pai parasse com aquilo. E ele parou como param os soluços. De repente.
Ficamos uns quinze minutos fora do carro. Acabou.
Passado o susto retomamos a viagem. Num silêncio. Que embutiu meu ódio. Para sempre.
Durante as férias. Todos os dias. Minha mãe cantava nos meus ouvidos. Bem dentro. Este mantra: Quem causou o acidente, Sofia, foi você. Quem quase matou todo mundo, Sofia, foi você.
É. Estive pensando agora enquanto relembro este fato. Talvez seja por isto que acho tão difícil fazer as contas. Contar os trocos. Organizar minha grana. Mas não quero pensar mais sobre isto. Até a próxima compra.
Mírian Cerqueira Leite