A PENA QUE FALTOU
Talvez pela pressa para terminar o serviço o jovem escriturário havia imprimido força demais sobre a caneta já muito usada e um dos lados da pena partiu-se.
O trabalho teria que ser interrompido.
Como escrever sem a pena?
O tinteiro com nanquim, aberto em sua frente, estava quase esgotado.
Durante todo o dia, só comera parte da merenda trazida de casa, sem nem mesmo se levantar da cadeira de palhinha.
- Cuidado para não sujar esse livro. É melhor o senhor ir comer lá nos fundos. Disse-lhe o Guarda Livros responsável pelo escritório.
- Não senhor. Eu vou parar agora e comerei mais tarde. Disse fechando a marmita de flandres e amarrando o guardanapo grande, quadriculado nas cores vermelha e azul, para que a tampa da marmita não escapasse quando fosse colocada na última gaveta da escrivaninha de madeira maciça cujo tampo deslizante se encaixava na parte traseira do móvel mais que centenário.
Alcibíades consultou o relógio de algibeira. Estava parado. Ele se esquecera de dar corda pela manhã quando saiu correndo para pegar o bonde, carregando a marmita que a sua mãe tinha preparado.
Se o despertador tocou, ele não percebera e quando foi acordado, mal pôde se vestir.
Não sobrara tempo para torturante tarefa de dar o nó da gravata que permaneceu dobrada dentro do bolso do paletó até boa parte do expediente.
- O senhor esqueceu a sua gravata, senhor Alcibíades?
- Não senhor. Vou já colocá-la.
- Ainda bem. Pensei que o senhor iria trabalhar descomposto, como se estivesse no lazer à beira mar.
Lá fora a noite havia caído completamente.
Os sons característicos da rua movimentada já não mais existiam. Todos tinha ido para as suas casas deixando as ruas desertas. Somente ele, o escriturário, esteve trabalhando até àquela hora adiantada sob a luz mortiça do candeeiro de querosene, mal cheiroso, fumarento e nem assim pudera terminar a tarefa porque a pena de aço, importada da Alemanha, com a qual ele e somente ele, fazia as letras góticas iniciais de cada página do enorme livro Diário do Banco Comercial e Industrial Siqueira & Simões Limitada onde se registravam todas as transações daquele estabelecimento que era o mais importante dos clientes do Escritório de Contabilidade Macedo & Aguiar.
Da janela do sobrado, Alcibíades olhou para a loja de materiais diversos do outro lado da rua que era o fornecedor do nanquim preto e vermelho e das penas para as canetas do escritório de contabilidade. Tudo fechado, as luzes apagadas, nenhuma vivalma que pudesse lhe dizer se a remessa das novas canetas, tão ansiosamente esperada, já havia chegado da Europa.
Navios ao porto chegavam todos os dias, mas será que dentre eles estava o que ele aguardava?
Não tinha como saber, o que ele sabia é que na manhã seguinte era o dia em que o livro tinha que estar no banco para ser analisado durante a reunião mensal dos acionistas e, se ele quisesse dar conta do serviço, teria que fazer serão durante toda a noite.
Ainda faltavam três páginas.
Dispunha de bastante tempo, mas fazer letras góticas com pena simples era infinitamente mais trabalhoso e iria descaracterizar a escrita no livro.
Sem saber como proceder, achou por bem consultar o chefe do escritório.
Alcibíades fechou o escritório, desceu as escadas cujos degraus de madeira, já fazia algum tempo, precisavam ser repregados e foi para a casa do senhor Macedo, um dos acionistas do escritório de contabilidade em que ele trabalhava.
Naquela hora da noite não havia condução, nem moleques a quem pedisse para levar o recado.
Apenas alguns bêbados dormitando na rua mal iluminada.
Algum tempo depois Alcibíades chegou junto ao enorme portão de ferro com a sineta pregada numa mola, lá em cima.
Ele teria que abalar o portão para o sino soar.
Não tinha como entrar para bater na porta.
Dois cachorros enormes, com cara de poucos amigos, estavam do outro lado examinando seus movimentos.
O sino soou, os cães ladraram e, surgido do nada um guarda noturno, com cara de poucos amigos, fez com que Alcibíades se identificasse e contasse, com todos os mínimos detalhes, o que ele estava fazendo àquela hora da noite, com a roupa machucada, sem gravata, barba por fazer, na porta de um Guarda Livros decente como seu Macedo.