A MENINA QUE NÃO SABIA LIMPAR A PÁ DE GATO
Entro aqui em casa e de novo esta sujeira toda. Nem sempre dá tempo pra limpar a casa. Faço isto no dia da minha folga do trabalho. Imagina! Folga é folga. E eu não tenho folga. Nunca tive.
Ouvi dizer que não é só poeira que suja. É a poluição. Coisa preta e grudenta. Um nojo! E me faz lembrar de coisas nojentas. Coisas que eu tinha que limpar. E que não eram minhas. Mas era minha obrigação. Dou de cara com a pá de lixo. E é ela que me faz lembrar.
Morávamos num apartamento. Que não era nada grande. Éramos em seis pessoas. Gente bastante para pouco espaço. E ainda por cima, tínhamos uma gata chamada Lolita. Além da chuva de pelos pela casa toda. Vinha um vento fedido. De onde? Da maldita caixa de areia.
Meu estômago se recusava a limpar aquela caixa. Mas a única pessoa que tirava a areia de urina e as fezes com a pá de gato, era eu.
Chegar perto daquilo era como estar num quartinho sem janelas. Onde todo o cheiro entrava pelas minhas narinas para escapar dali. E uma vez dentro de mim, parecia um mar bravo. Ondas gigantes quebrando tudo. Feito tsunami. Mas nem vomitar podia.
Aquele era um serviço que ninguém queria fazer. E não faziam mesmo.
Eu me atrapalhava toda nos meus seis anos de idade.
Me desvencilhei dos cachos dos meus cabelos com uma mão. Me encolhi feito caracol dentro de mim. E com a outra mão enfiei a pá de gato na areia. Queria fazer bem rápido pra poder terminar mais rápido ainda. E foi o que fiz. Troquei toda aquela porcaria de areia. Levei a pá no lugar dela. Disse pra mim: Muito bem Sofia, você está livre! Mas não!
Assim que me virei. Eis que topo com uma estátua de mármore. Duríssima. Gelada.
A cara da dita cuja me lembrava uma parede desbotada pelo tempo.
Rachaduras abriam pequenas valas por onde minavam águas esverdeadas. Era o ódio líquido escorrendo.
Minha percepção infantil via com nitidez aquele beco sem saída em que eu estava. Pensei: Se ficar o bicho come, se correr o bicho pega. Mas não sabia o porquê!
Brandindo a pá de gato e girando na minha frente como uma polícia que chega batendo com cassetete. Ela não deixou pra depois. Descobriu que eu não tinha limpado a pá. Disse: Sua porca inútil! Agora vou terminar o seu serviço. E num movimento certeiro começou a passar a pá nos meus cabelos. Nem tive tempo de me transformar na Sofia Caramujo. Aquele cocô todo enroscando nos meus cachinhos. E como se isso não fosse o suficiente veio a profecia: Da próxima vez mando limpar a pá com a sua língua. Entendeu?
Claro que entendia. Sabia bem que com ela promessa era dívida.
E aqui está a pá de lixo. Suja. E me recuso a limpar. Acho que faço isso em protesto. Assim posso ver os destroços poluídos da minha infância estilizados nestes restos de poeira pegajosa. Feito um capítulo impresso numa página que teima em não virar.
Mírian Cerqueira Leite