LÁGRIMAS*

Janeiro de 2015. Centro Cirúrgico do Hospital São Paulo. No corredor um homem deitado em uma maca cantarola, feliz, Vitrines, de Chico Buarque. A enfermeira estranha bastante a cena. Normalmente aqueles que esperam cirurgias estão sedados, nervosos ou fazendo algum tipo de ritual religioso. Olha na ficha dele. Está esperando para fazer uma neurocirurgia de correção de uma MAV (má formação artério venosa)cerebral grau 5. Tem 25% de possibilidades de ficar na mesa e mais de 60% de ter sequelas. Fica tão impressionada que resolve conversar com ele:

-Nossa, o senhor está bastante calmo. Nunca vi ninguém se preparar para uma cirurgia cantando.

-Não é nada demais. Quero cantar as músicas que mais gosto enquanto ainda posso.

-Não fale assim, senhor. Vai dar tudo certo.

-Não conto muito com isso.

-Eu li na sua ficha que o senhor recusou a medicação calmante pré-operatória. Não gostaria de tomá-la agora. A sala onde vão te operar vai demorar um pouco para ficar pronta.

-Não, quero estar plenamente consciente até a anestesia. Assim posso cantar mais músicas.

-Eu não deveria perguntar isso. O senhor não tem medo?

-Não. É tudo uma questão de justiça...

Maio de 2005. Cemitério da Consolação. Uma chuva fina cai sobre São Paulo. Não se poderia imaginar clima mais apropriado para um enterro. Cerca de cinquenta pessoas se reúnem ao redor de uma cova simples, que contrasta com os mausoléus suntuosos e centenários ao redor. Uma das mulheres presentes, amiga do falecido, toma a frente e diz algumas palavras dignificantes sobre ele. O filho mais novo mantém uma atitude sóbria. O mais velho se deságua em lágrimas. Ninguém acha estranho tendo em vista a preferência declarada do pai pelo primogênito, a relação mais próxima entre os dois durante toda vida e a distância que se encontravam um do outro desde que casou há 6 anos. Sua esposa está ao seu lado, mas não pode abraçá-lo, pois segura sua filha de quatro anos, que adormeceu, nos braços. Em determinado momento é a mãe que vem e o abraça. Ele deita a cabeça em seu colo e deixa seu pranto rolar solto.

Julho de 1998. Uma passarela sobre a Avenida 23 de Maio, ao lado do Hospital da Beneficência Portuguesa. Veria-se uma cena insólita, se alguém na metrópole onde todos vivem apressados se dignasse a prestar atenção. Um homem vai de um lado para o outro, como se estivesse ensandecido. Naquele momento está chovendo em São Paulo. Chora copiosamente. Algumas vezes para por um longo tempo. Depois vai para a direita. No meio do caminho desiste e vai rápido para a esquerda. Mas antes de descer muda de ideia e volta ao seu insano ir e vir. Cada vez mais encharcado. A 23 de Maio é a mais larga avenida paulistana.

Escuta ao longe o som dos aparelhos. Seu peito doí. Morde. Não tem uma cânula na boca, então não está entubado. Algo faz pressão nos seus pulmões. Identifica o som do Bepap (aparelho de pressão positiva utilizado para auxiliar na respiração sem precisar entubar). Prefere não abrir os olhos ainda. Pensa: Bem, vamos ver qual é minha pena, não é pai?

Faz várias operações matemáticas e revê várias recordações mentalmente. Até ali parece tudo normal. Abre os olhos. Como imaginou está em uma UTI. Mexe os dedos das mãos, depois os dos pés. Até aqui tudo bem. Esses movimentos alertam a enfermagem. Sente sua sedação ser aumentada e uma enfermeira vem com aquela conversa mole em tom baixo para supostamente tentar acalmá-lo. Só então percebe que seus braços estão contidos nas beiradas da maca. Aparecem três figuras com roupas normais, apenas com jaleco por cima. Devem ser os neurocirurgiões. Bem, até agora tudo está perfeito, pensa, então minha sequela deve estar na fala:

-Vocês podem tirar essa máscara da minha cara. Incomoda muito. Compreende suas próprias palavras. E como retiram o aparelho e colocam dois trocinhos no seu nariz, eles também. Os médicos fazem milhares de perguntas, as quais responde quase sem hesitação. A alegria deles é evidente. Dizem que são necessários alguns exames, mas a primeira impressão é de que não houve nenhuma sequela. Ele começa a derramar várias lágrimas. Todos ficam enternecidos com a cena, imaginando a gratidão do paciente.

Depois de algum tempo após o enterro todos se cumprimentam. Há aquele pedido padrão para que não se perca contato, que todos sabem que não vai ser atendido. Acabam sobrando apenas no cemitério os mais próximos. De repente o filho mais moço do falecido, que cuidou dele nos últimos anos, vai até o mais velho, que ainda chora, e lhe dá um murro no rosto que o faz cair:

-Você vai pagar pela sua ingratidão. E saí no meio da chuva e do olhar incrédulo de todos. O irmão não esboça nenhuma reação.

As idas e vindas da pessoa na passarela sob a chuva continuam por quase duas horas. Esta era o filho mais velho e mais querido de um paciente da Beneficência Portuguesa. O pai passaria por uma grande cirurgia cardíaca de alto risco naquela noite. Mesmo que sobrevivesse teria que ter cuidados constantes para o resto dos seus dias. Ele devia tudo a ele, mas estava começando a viver agora. Ter que cuidar dele estragaria tudo. Se fosse para a esquerda iria para a igreja que frequentava e pediria para Deus que o ajudasse na cirurgia. Se fosse para a direita iria para um puteiro no Centro e passaria a noite na esbórnia, tentando esquecer que quer a morte do homem da sua vida. Vai para a direita...

Aristoteles da Silva
Enviado por Aristoteles da Silva em 13/10/2016
Reeditado em 29/03/2022
Código do texto: T5790917
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