TIA AUGUSTA
Depois da missa de sétimo dia da morte de tia Aghata, fomos todos, os mesmos por sinal, para o casarão onde a megera passara toda a sua vida e aonde nós tínhamos que ir todo primeiro domingo de cada ano para que ela examinasse os nossos boletins escolares e repetisse a cantilena de que na época dela é que as escolas prestavam.
Anos depois fiquei sabendo do que se tratou naquela reunião, que para felicidade geral das crianças (e dos adultos também) foi a última, naquela casa e com a presença obrigatória de todos, porque afinal era a leitura do testamento da tia Aghata, feita pelo tabelião responsável pelo documento.
Foi a primeira vez que eu vi a cozinheira, que todos nós sabíamos que existia, mas ninguém nunca vira e, para espanto geral, por determinação do tabelião, ela e seu Oscar, vestidos com as fardas funcionais sentados na sala de visitas.
Como último desejo, todos os bens da família, incluindo conta bancária, os imóveis alugados, o casarão com todos os utensílios, as roupas e as joias foram destinados à Santa Casa de Misericórdia.
Os antigos empregados receberiam apenas os salários do mês e deveriam desocupar o casarão imediatamente após a leitura do testamento.
Havia a recomendação especial para seu Oscar.
Ele devia queimar todas as fotografias e juntar os porta-retratos aos demais utensílios da casa para serem entregues aos novos donos.
Nenhuma referência a nenhum dos parentes, muito menos uma palavra sequer sobre a existência da tia Augusta que também comparecera, em grande estilo, a essa reunião.
Finda a leitura, o tabelião entregou os envelopes aos empregados contendo os salários de cada um até aquela data.
Com a voz fraca dos desamparados, seu Oscar disse ao tabelião que eles não tinham para onde ir. Que durante toda a vida, eles serviram naquela casa que consideravam como se fosse parte deles, mas o tabelião o interrompeu dizendo-lhe que não poderia fazer nada, a não ser cumprir a última vontade da defunta, por mais que isso lhe doesse.
Foi nesse instante que a tia Augusta se fez ouvir.
O timbre da voz era exatamente igual ao da tia Aghata, mas havia a meiguice que as tornavam diametralmente opostas.
Ela disse que os dois iriam para a casa dela e que lá ficariam até quando lhes conviesse. Que seriam muito bem vindos e que não precisariam mais trabalhar, estariam aposentados, que fossem arrumar os seus pertences para saírem de vez daquela casa.
Obediente como um cão, seu Oscar retirou as fotografias das molduras e as levou para queimar no fogão a lenha onde estava sendo preparado o jantar dos dois empregados que, depois da morte de tia Aghata, eram os únicos moradores.
A cozinheira despejou no lixo os alimentos que estavam sendo preparados, lavou os utensílios e, segurando uma malinha, daquelas quadradas, de madeira forrada com papel amarelo, disse – estou pronta para ir.
Seu Oscar entrou na sala arrastando uma mala maior do que a da cozinheira e saímos todos para nunca mais voltarmos lá.
O tabelião fechou a porta e colocou a chave na pasta de couro surrado.
A casa da tia Augusta ficava no mesmo bairro, três ou quatro ruas adiante. Era grande, com varanda, jardim, quintal com horta e galinheiro. Havia uma placa presa no enorme portão de ferro, com os dizeres PENSÃO AUGUSTA – EXCLUSIVAMENTE PARA MOÇAS DE FINO TRATO.
De fato, viviam nessa pensão umas quinze moças que faziam os programas de “fino trato” com os homens distintos da sociedade local. Os clientes e amigos, da tia Augusta eram usineiros, fazendeiros criadores de gado, juízes, professores universitários, médicos, políticos, comerciantes, só gente influente e disposta a pagar caro pelo sigilo protetor para as suas vidas ilibadas.
Homens sérios, trabalhadores honestos que encontravam nas moças, que tia Augusta carinhosamente chamava de “minhas meninas”, o aconchego e a carícias que lhes eram negadas pela família e que estavam sempre dispostas a ouvir as peripécias de suas vidas atribuladas, seus problemas familiares, que tinham como pano de fundo, sempre, a esposa.
Os filhos, a sogra, os parentes em geral, mas era principalmente a mulher a eterna causadora de todos os perrengues daqueles homens de bem que pagavam regiamente pelas horas mansas dos bons momentos vividos em companhia daquelas moças jovens, compreensivas e cheias de gestos carinhosos.
A pensão Augusta foi inaugurada alguns anos depois que a família expulsou de casa a filha sem vergonha, que se deixou seduzir pelo namorado.
Um Zé Ninguém, trabalhador numa casa comercial, sem eira nem beira, sem futuro que, emboscado numa noite chuvosa, recebeu o castigo necessário para que, depois de morto, não voltasse a ofender famílias decentes.
Saída de casa apenas com a roupa do corpo, tia Augusta encontrou na pensão que agora era sua, o abrigo e a possibilidade de ganhar a vida, sem precisar se expor.
Foi acolhida, leiloada entre os grandes da época e mais tarde, depois de vários abortos e com a morte da sua “protetora” assumiu a direção da pensão que antes se escondia no anonimato.
Agora, com ela à frente, era registrada na prefeitura, com placa e tudo mais que a caracterizasse como estabelecimento comercial de fino trato, onde não havia escândalos, nem polícia e as vagas para novas hóspedes eram preenchidas, geralmente, para fazer favor aos graúdos que precisavam de local adequado para instalar “parentas” ou “afilhadas” que "precisavam de local decente" para morar enquanto faziam um tratamento ou estavam matriculadas num curso qualquer, desses que só existem na capital.
Tudo muito conveniente, sigiloso e altamente rentável.
Fomos pouquíssimas vezes à casa da tia Augusta, mas ela nos visitava com frequência e nas festas de final de ano, quando estávamos todos reunidos, ela chegava com brinquedos para mim e para meus primos e dizia que tinha encontrado o papai Noel na rua e que ele tinha pedido para ela fazer o favor de trazer os nossos presentes porque já estava ficando tarde e ele ainda tinha muitos afazeres lá para os lados do Polo Norte.
Tudo muito bom, muito bonito, mas o melhor presente que recebi dessa tia adorável foi no quarto da pensão, através de uma das suas meninas, na mesma semana em que completei dezessete anos...