O HOMEM QUE MORREU DUAS VEZES!

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O HOMEM QUE MORREU DUAS VEZES!

A história nos apresenta certos fatos, que parecem lendas, mas que acontecem por esse mundo afora, mesmo que sejam incomuns, inusitados e até inacreditáveis.

Como sabemos, há pessoas que sofrem ataque cataléptico e aparentam estar mortos. Até o coração e a respiração ficam latentes, por horas e horas, e alguns desses infelizes são sepultados pela família. Alguns dão mais sorte e acordam durante o velório. Quando isso acontece em locais menos civilizados, a religião entra em cena e aparecem notícias de milagres que, num primeiro momento, chegam a apavorar quem está por perto. Outros acordam dentro do caixão já fechado à porta do cemitério ou ao seu caminho. Aí é aquele ‘deus nos acuda’, corre-corre, diz que disse, orações e ladainhas, tudo isso precedendo os ‘comes e bebes’. É justo. Não é todo dia que alguém que partiu para sempre, volta do sempre para...

O que vou narrar, entretanto, não se trata de ‘catalepsia’. Trata-se de erro, engano, despudor, negligência, descuido, desinteresse com a vida alheia, ou como o leitor achar conveniente denominar.

Em meados do ano de 2013, numa sexta-feira 13, (é bom colocar o 13 e sexta-feira juntos para dar aquele ‘ar’ de coisa ruim ao fato), o Sr. Juca andava pelas ruas da periferia de São Paulo em direção à sua casa, onde morava sozinho. Natural do Piauí, Juca procurava trabalho na capital paulista depois de ter sido ajudante de pedreiro, minerador e de ter trabalhado como escravo numa fazenda do Pará de onde conseguiu fugir, levando na algibeira alguns diamantes que conseguira próximo à usina de Belo Monte, numa cratera aberta por uma ‘pedreira’ desativada. Ele sabiamente havia guardado aquelas pedrinhas e resolveu arriscar a vida em São Paulo. Passando em revista alguns locais onde poderia morar achou um barraco que lhe pareceu interessante. Foi ao centro e trocou duas pedrinhas por uma certa importância em dinheiro, o bastante para adquirir o barraco, um fogão, geladeira e cama usados que desse para passar alguns dias, até conseguir trabalho.

Passou a mão na trouxinha com todos os documentos e partiu para os locais próprios para arregimentação de mão de obra. Levou o dia todo, mas a maré não estava para peixe e ele voltou pra casa sem conseguir uma vaga, diante da sua situação de analfabeto; até que havia trabalho, mas as exigências eram absurdas. Ajudante de pedreiro tinha que ter, pelo menos o curso primário. ‘Onde já se viu?’, indagava o Juca. Curso primário uma ova! Ele nunca tinha posto os pés numa sala de aula!!! No dia seguinte, voltou a batalhar por emprego e teve uma promessa para fazer um teste. Este era o dia 13 num mês de 2013. Juca voltava pra casa, feliz por ter conseguido a vaga, mesmo que para um teste. Desceu do ônibus e ia andando já no lusco-fusco, sem reparar que era espreitado por um vagabundo que o abordou na esquina e foi logo dando a senha: ‘perdeu, perdeu, coroa; vá passando tudo’. E, ato contínuo, depenou o pobre Juca, levando-lhe tudo, inclusive os documentos. Ele tentou argumentar: - ‘Amigo, pelo amor de deus, deixa a trouxinha dos documentos que amanhã vou conseguir uma vaga’. O bandido escafedeu-se e o Juca ficou ali, paralisado. Era um cara forte e bom de briga, mas foi tudo tão rápido, que aconteceu como queda de raio, num átimo, em fração de segundos...

Desde que saíra da pequenina cidade do Piauí próximo à Serra da Capivara, mais de dez anos se passaram. Juca foi até o barraco, pegou uma nota de 20 reais e foi ao boteco da esquina tomar uma ‘pinga’ para poder raciocinar. Ele tinha essa velha mania. Para festejar ou para chorar, uma pinga sempre tinha bom lugar... Foi ao boteco e bebeu umas dez doses, até a grana acabar. Voltou pra casa e dormiu sem tomar banho. Estava exausto!

No dia seguinte, acordou com dor de cabeça, mas veio-lhe a idéia de procurar um cartório no centro da cidade para renovar seus documentos. Passou o final de semana entre uma pinga e outra, do boteco pra casa, da casa pro boteco. Na segunda cedo, pegou o trem desceu na Estação da Luz e foi atrás do tal cartório. Pergunta aqui e ali, finalmente encontrou o cartório e pegou uma senha. Uma senhora gorda e simpática o atendeu. Ele contou a história e ela perguntou seu nome completo. Ele disse, mas foi logo avisando que não sabia ler e escrever. – Não tem importância – retrucou a gordinha que dirigiu-se à sala ao lado e voltou uns 15 minutos depois, um tanto desconfiada. Seu Joaquim, o senhor está morto há 5 anos. Ele olhou para o lado – pensando que a funcionária estivesse falando com outra pessoa, mas era com ele mesmo. - Como, minha senhora? Eu estou vivo, vivinho da silva. A mulher insistiu. Ele estava morto. Em seguida a mulher chamou um policial que prestava serviço à paisana. O policial examinou bem o livro de registro de óbitos e sentenciou: - Sr. Joaquim, vamos até a delegacia de Polícia pois o Sr. tem de se explicar à autoridade. Juca foi no trajeto contando a história, de como havia sido assaltado, etc. O policial perguntou: - Em que delegacia o senhor registrou a ocorrência? Juca ficou paralisado. - Como registrar a ocorrência? O que era isso? Chegaram à delegacia e o policial o entregou ao delegado de plantão que mandou fazer uma busca sobre os antecedentes do Sr. Joaquim; e qual não foi a surpresa ao se deparar com a ficha de um bandido de alta periculosidade, acusado e condenado por várias mortes e tentativas de homicídio que havia desaparecido, mas tido como morto num incêndio que aconteceu numa explosão de um caixa de banco no centro da cidade. Em vista disso, seu processo havia sido baixado ao arquivo judicial, mas quando alguém aparecia para contar historinhas de perda total de documentos, a primeira atitude da Polícia Civil era a de recorrer aos arquivos. Era difícil, mas vez por outra aparecia um Joaquim qualquer, há muito fugitivo, condenado ou apenas suspeito...

O delegado veio com um riso amarelo e disse ao pobre diabo: - Seu Joaquim, seus dias de glória acabaram. O senhor está preso à disposição da Justiça. Mandou lavrar o ato de prisão e emitiu em seguida um ofício à autoridade judiciária apresentando o fugitivo da Justiça. Depois de breve audiência sem ter direito a explicações, Joaquim foi parar em meio a dois sujeitos mal-encarados, acusados de tráfico de drogas. Daí para diante sua vida se transformou num inferno. Dois meses depois foi encaminhado a uma penitenciária de segurança máxima na cidade de Presidente Prudente, onde passou oito anos. Não conhecia viva alma em São Paulo. Tinha 54 anos de idade quando foi preso, nunca tinha delinqüido. Era um homem pacato, jamais se metera em brigas, gostava de trabalhar, por que isso lhe havia acontecido? Nunca foi visitado, nunca falava, sempre macambúzio, até a data em que, finalmente, lhe deram um indulto e ele pode sair da cadeia. Aos 62 anos, aparentando ter mais de 80, que esperar da vida? Quem lhe daria uma oportunidade? Entrara na cadeia com a roupa do corpo e saiu com uma outra que escolheu no depósito próprio do presídio.

Saiu andando, andando, sem destino. Como sabia que seu barraco devia estar invadido,nem pensou em voltar para a capital. Saiu andando, a esmo e no trajeto em direção à rodovia foi pensando em sua vida de criança, num povoado perto da Serra da Capivara, onde costumava caçar e tomar banho nos córregos. Família pobre, a mãe separada do pais, que não chegou a conhecer, uma irmã que morava em outra cidade numa casa de família, mas os tempos felizes da infância e da adolescência, tudo isso veio-lhe à mente. A tanto tempo não pensava no passado que fazia esforço para esquecer. Pensava em melhorar de vida e voltar para estar com sua mãe. - Será que ela está viva? – perguntava a si mesmo em silêncio. Já na rodovia, andava pelo acostamento e vez por outra dava um passo em falso, deparando-se no leito da pista e assustava-se com o buzinaço de um carreteiro, voltou para o acostamento. Pouco se lhe dava o perigo que corria. Afinal, o que tenho a perder? – se perguntava... De repente resolveu atravessar a pista para ver os carros de frente e nessa travessia numa rodovia de alta velocidade, finalmente, encontrou a paz, que levou a vida toda a buscar, mas que veio agora ao seu encontro, para sempre!

Ricardo De Benedictis
Enviado por Ricardo De Benedictis em 11/10/2016
Reeditado em 23/05/2019
Código do texto: T5788163
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