DELÍCIA*

De segunda a sexta ele pegava o trem para trabalhar e para voltar. A estação perto da sua casa era antiga, então, para passar de um lado para o outro tinha que subir uma enorme passarela. De um lado ficava um bom bairro de classe média. Do outro uma favela muito mal afamada. Quando chegava do serviço descia do lado desta. Nunca teve dúvidas. Subia as escadas sempre apressado para caminhar até seu lar pela parte mais afortunada. Certo dia uma pessoa no trem lhe disse que pela "comunidade" o caminho para a casa dele era muito mais rápido e menos cansativo.

Em determinada ocasião, com raiva de Deus e do mundo, resolveu arriscar passar por ela. Havia uma larga rua central asfaltada. Em seus dois lados muitas residências e comércios. Algumas delas de madeira, mas a maioria de alvenaria. Tudo muito simples. As crianças brincando na rua, os precocemente velhos nos bares, os moços caminhando de um lado para o outro com a arrogância natural da juventude. Várias moças bonitas, muitas com crianças no colo. Algumas vestidas com saias longas e camisetas compridas. Mas a maioria com shorts curtíssimos ou calças apertadas e blusas minusculas. Nas garagens e na rua havia tanto carros novos e caros quanto alguns que só deveriam andar empurrados, de tão velhos e maltratados que estavam. A rua terminava em um enorme campo de futebol mal cuidado. Várias crianças, na maioria meninas, estavam sentadas no meio fio, em frente a um bar improvisado em uma garagem. Depois precisou andar por um pedaço sem asfalto, com esgotos a céu aberto. Este caminho dava em um estreito corredor, com um muro de um lado e as grades da ferrovia do outro. Ficou um pouco assustado quando viu um grupo de cerca de dez pessoas bebendo e usando drogas. No entanto ninguém o incomodou. Depois de 500 metros chegou numa cancela da ferrovia. Atravessando-a, andou mais meio quilômetro e já estava em casa.

Entrou pelo portão, atravessou seu enorme quintal e entrou. Como sempre pediu comida em algum delivery e saiu na varanda para fumar um cigarro. Realmente o caminho era muito mais curto por ali. Chegou uns vinte minutos mais cedo. E não era só isso. O lugar tinha uma vitalidade, uma alegria, alguma coisa que não conseguia explicar que o fazia sentir-se muito bem. Isso era algo incomum. Sempre fora uma criança introvertida, mais propensa aos livros do que aos amigos. A família, tradicional e moralista ao extremo, abandonou sua mãe quando ela engravidou dele e se recusou a contar quem era o pai. Ela faleceu quando ele terminou o curso técnico de contabilidade aos 18 anos. Deixou-lhe várias propriedades e investimentos. Liquidou tudo e colocou todo o dinheiro em um plano de previdência. Com os rendimentos mensais, que por sinal eram vinte vezes maiores que o seu salário, poderia viver com tranquilidade o resto de sua vida. Mas, sabe-se lá porque, fazia tudo como se fosse mais um na multidão. Até uma faculdade a distância de logística cursava. Só o que tinha na poupança, decorrente do que não gastava de seus rendimentos, poderia lhe garantir uma vida mais confortável do que a que levava. Na verdade sobrava dinheiro até do que recebia do trabalho.

Começou a partir de então voltar sempre por ali. Como seu serviço exigia que usasse social, passava por crente. Um dia as meninas que ficavam no bar em frente ao campo resolveram brincar com ele. Assim que ele passou começaram a cantar:

"Delícia, delícia, assim você me mata"

"Aí se eu te pego. Aí, aí se eu te pego."

Enrubesceu na hora. Andou mais rápido para fugir da vergonha. Em casa passou a noite pensando no assunto. Não gostava deste tipo de exposição. Mas ao mesmo tempo não queria perder o privilégio de caminhar por ali. No outro dia as crianças fizeram a mesma brincadeira. Ao invés de andar mais rápido começou a dançar e terminou fazendo uma reverência como se estivesse em um teatro. Depois entrou no bar e comprou uns dez chocolates e um cigarro paraguaio. Distribuiu os doces para a molecada. Ao chegar no corredor abriu o maço e acendeu um deles. Os "nóias" na mesma hora vieram lhe pedir um cigarro. Deu dois para cada um que estava ali.

Isto aconteceu umas dez outras vezes e ele sempre tomou a mesma atitude. Fingia não ligar para a zombaria, dançava e agradecia e depois comprava doces para as crianças e um maço de cigarros para distribuir para os viciados. Até o dia que Dona Zinha, a proprietária do bar improvisado, junto com um sujeito mal encarado vieram-lhe perguntar quais eram as intenções dele fazendo isso. O rapaz foi bem direto:

-Você é pedófilo?

O sangue dele gelou até a alma. Nunca tinha passado por uma situação dessas. Mas conseguiu explicar que o caminho até sua casa por ali era mais rápido e que começou a comprar doces para as crianças porque elas estavam tirando sarro dele toda vez que passava e que não quis passar pelo ridículo de discutir com os pequenos. O cara entendeu e ainda por cima lhe deu sua palavra que não seria incomodado quando passasse na favela. Ele prontamente pediu que não fizesse nada com as crianças pois não se incomodava com a brincadeira. O outro explicou que existiam problemas muito maiores que o cercavam do que travessuras infantis. Dona Zinha, mãe dos dois meninos que ficavam ali, um mais velho com trejeitos afeminados, o Henrique, e o outro mais moleque, também se deu por satisfeita. Também era tia de várias das meninas e conhecida da mãe de todas.

A brincadeira pegou e ele passou a ser conhecido por todos como Delícia. E por mais estranho que fosse amava o apelido. Mesmo não sendo de beber começou a tomar uma cerveja com quem estava no bar na hora que passava. Largou o oboé que havia estudado pela vida inteira e começou a estudar cavaquinho. Começou a descer aos sábados para participar do pagode que Dona Zinhá patrocinava. Depois de uns seis meses já estava dentro da roda e fazendo bonito. A cada música ouvia-se alguém gritar:

-Vai Delícia!

Passou a comer sempre o acarajé que ela fazia de sexta a domingo, mesmo não sendo das suas iguarias preferidas. Um dia, enquanto Dona Zinha preparava o quitute, falou sobre como desejava reformar seu estabelecimento e de como queria poder pagar um curso de cabeleireiro para o filho mais velho. Ele perguntou quanto ficaria tudo por alto. Depois se sentou em uma mesa com um papel e uma caneta e dez minutos depois se levantou e o entregou a ela. A cara de espanto da senhora chegava a ser cômica:

-Você tem todo esse dinheiro?

-Eu não gasto quase nada, fui juntando.

-E me emprestaria nessas condições?

-Assim como está escrito aí. A juros de 5% ao mês em 120 prestações. Ou, se você preferir, fico sócio aqui do bar e você me paga 10% do lucro de cada semana.

-Prefiro a segunda opção, não gosto de dever nada.

-Também prefiro. Tenho muita confiança na senhora. Acho que vou lucrar muito mais assim.

E assim começou sua vida de empresário de favela. Logo era sócio de um comércio de fraldas, de um escritório de direito penal, cível e trabalhista (que ele praticamente bancava em sigilo para que pudesse funcionar com os preços e condições de pagamento acessíveis), de um ferro velho, de uma pequena fábrica de blocos, de uma barbearia de um moço de 13 anos que aprendeu a cortar cabelos sozinho (com a condição que fosse todos os dias para a escola). De uma pequena empresa de microcrédito que oferecia condições muito melhores que as dos bancos, de uma mercearia, de um restaurante, de uma pequena loja de roupas para mulheres, de um atacado de mandioca que fornecia o tubérculo para que várias pessoas saíssem com carrinhos de mão lotados para vender pela cidade. No mais absoluto segredo, bancava internações de dependentes químicos, através de uma igreja evangélica e também de uma missão católica. Ajudou a Dona Lena, que era conhecida por pegar todas as crianças que as nóias pariam para cuidar, a montar um abrigo e assim receber ajuda da prefeitura. Comprou um pequeno ônibus e uma grande van que levava todos os finais de semana as mães, esposas e familiares para verem seus entes queridos presos. Durante a semana transportavam trabalhadores da comunidade até seus serviços. Fez um acordo com o gerente do tráfico local onde ele fornecia cestas básicas e remédios não controlados para que distribuísse pela comunidade e em contrapartida não se vendia drogas na frente dos moradores e nem para crianças. Além disso eles passaram a coibir os usuários de se drogarem em frente da população em geral.

Enquanto fazia todas estas coisas pela favela, ele mesmo começou a mudar. Pela primeira vez sentia um tremendo bem estar. Que diferente de antes, era contínuo. A alegria deixou de ser uma estranha para se tornar uma companheira. No seu trabalho, onde antes só falava o estritamente necessário, passou a ser uma pessoa comunicativa e querida. Terminou a EAD de Logística e começou a fazer Direito, se especializando nas áreas trabalhista e tributária. Na faculdade, o convívio social, que antes lhe causava pavor, agora era algo tranquilo. Fazia parte até de uma turma.

Por mais que tentasse manter o anonimato, na quebrada tudo se sabe. Financiou a reforma do campinho, formaram um time do bairro com o nome de Delícia futebol clube. Cascalhou e asfaltou a rua de terra paralela a avenida principal, fizeram um abaixo assinado e a batizaram de Rua Delícia. O ônibus e a van que levavam as pessoas para o CDP da cidade (Centro de Detenção Provisória) e para o presídio onde ia a maioria dos condenados da comunidade ficou conhecido como expresso Delícia. Em duas eleições municipais teve que recusar inúmeras propostas de sair candidato a vereador ou de apoiar um ou outro postulante ao cargo. Não podia passear pela comunidade sem ser chamado por todo mundo para tomar uma cerveja ou café.

Mas o relacionamento que era mais forte era com dona Zinha. Pagou para o Henrique cursos de especialização em cuidados capilares, manicure, esteticista, massagem linfática. E ainda financiou a abertura do salão dele no outro lado da estação. Para o mais novo pagou várias internações, em vários tipos de clínicas diferentes. Nada resolveu. Acabou sendo preso por roubar um celular de um pedestre. Outro relacionamento forte foi com a Madalena. Quando a conheceu era uma mulata linda de corpo e de rosto, mas com apenas 14 anos. De imediato ficou fascinado. Por mais que tentasse, não conseguia parar de pensar nela. Infelizmente, como tantas outras, engravidou. E para piorar o pai sumiu no mundo. Pagou para a Camila, uma travesti já idosa, famosa por seu talento como cuidadora de crianças, para que cuidasse do bebê para que ela continuasse estudando. Tentava de tudo para manter essa paixão em segredo, sem muito sucesso. O que aliviava é que se tornou o homem mais desejado do lugar. Coroas, meninas, casadas, mulheres de todos os tipos enfim, queriam sair ou namorar com ele. A experiência dele com o sexo feminino era praticamente nula. Felizmente confiou nas Donas Zinha e Lena, além de outras pessoas. Aproveitou muito, mas não se envolveu com nenhuma. E nunca esqueceu a Madalena.

Quando ela fez 16 anos finalmente começou a pensar com mais carinho nele. Já era consciente do interesse dele há muito tempo. Firmaram um tipo de compromisso quando ela estava com 17 anos. Em um cavalheirismo daqueles que não existem mais, só tiveram algum tipo de contato corporal depois que ela completou 18 anos. Três meses depois deu uma enorme festa de noivado onde todos foram convidados. Mais um ano e estavam se casando. E a festa foi maior ainda.

Com o tempo acabou sendo convidado para trabalhar em uma grande empresa de Logística em sua cidade, e aceitou. Um dia saindo de um restaurante de alto padrão no centro da cidade junto com seu novo patrão. Henrique estava passando e quando o viu fez a maior festa, saiu correndo e o abraçou, dizendo: Delícia, que saudade!

Quando ele saiu, disse ao novo empregador:

-Patrão, eu não vou nem tentar explicar...

Aristoteles da Silva
Enviado por Aristoteles da Silva em 09/10/2016
Reeditado em 29/03/2022
Código do texto: T5786128
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