A MENINA QUE NÃO SABIA LAVAR LOUÇA

Seria muito bom se a gente pudesse lavar as memórias. Deixá-las secar. E guardar em ordem no armário. E quando fosse preciso lembrar pegaríamos apenas o que fosse necessário. Mas não. Elas se empilham aos montes. Como esta pia cheia de louça suja. E vão teimando em aparecer cada vez mais. E a porcaria toda fica ali. Uma em cima da outra. Restos de ontem. Restos de hoje.

Não gosto de lavar louça! Lavo por necessidade. Se eu não lavar ninguém lava. Esta é a saga de quem mora sozinha. E lavo do jeito que acho que devo lavar.

Por quê estou dizendo isso? Porque não existe jeito certo. E eu não entendo que possa haver. A logística é simples. Pega a bucha. Derrama detergente. Abre a torneira. E vai ensaboando. E vai enxaguando. Pronto! Mas nem sempre foi assim. Desse jeito.

São lembranças vindas de muito longe. E que se aproximam trazendo barulhos de coisas malucas.

Eu era bem pequena, uns seis anos, pernas curtas para a altura da pia. E minha mãe colocava um banquinho para que eu alcançasse pratos, panelas e copos, talheres e potes de plástico dentro da pia. Um nojo! Lá em casa todo mundo sujava louça e jogava dentro da pia. Usava um copo e jogava dentro da pia. E quem lavava era eu.

Naquele dia ela estava cozinhando. Eu lavava. O fogão era bem ao lado da pia. Aquela cara de caduca ficava olhando pelo rabo do olho. Parecia que era de outro planeta. Aquela cabeça era a maior parte do corpo dela. E ficava virando pro meu lado o tempo todo. Vigiando. Eletricamente virando do fogão pra pia, da pia pro fogão. E eu parecia uma tartaruga pirada. Nem sabia por onde andar naquele terreno limoso.

Já havia lavado uma panela. Passado a palha de aço, o tal do Bombril. Estava feliz com meu feito. Mas ela não estava. De repente meu mundo acabou!

Eu já esperava o pior quando o bafo daquela boca chegou bem pertinho do meu nariz. E veio junto com um cascudo na minha cabeça. Um croque bem no meu cocoruto. Quase desmaiei de susto misturado com surpresa e dor.

Ela foi urrando sua raiva: Já não te falei que não se lava panelas antes dos copos? Você é burra! Não aprende nunca!

Comecei a ver tudo em câmera lenta. Estava atordoada pelo peso daquele punho fechado descendo implacável sobre minha cabeça. A panela estava brilhando. Eu via tudo brilhando. Estrelinhas azuis e prateadas chuviscavam brilhos por toda cozinha. Minha irmã mais velha tocava Bach no piano na sala. Os sons foram se transformando em zumbidos. Até desaparecerem. Fiquei surda de repente.

Olhava para aquela mulher que gesticulava sem parar. E vi que ela estava babando. Os ruídos foram fazendo-se presentes aos poucos. E ela disse: Tá esperando o quê pra terminar o serviço?

Eu me apressei em continuar. Separei as panelas. Fui lavando. Estava entretida com a água friíssima da torneira que vencia as massas brancas de bolhas de sabão. Dei de cara com uma frigideira preta. Difícil de lavar. Toda encrustada de gordura seca de bife. Coloquei embaixo da água. Joguei detergente. E nada removia aquela crosta marrom. Disse para mim mesma: Sofia, sua burrinha, a bucha tem dois lados. Um amarelo macio. Um verde áspero. Use o verde áspero.

E não é que deu certo? Quase. Foi aí que tudo começou a dar errado!

Minha mãe, numa daquelas viradas malucas, olhou bem na hora que eu estava esfregando a frigideira. E com o lado verde.

Ela deu um grito agudo. Tão agudo que era capaz de trincar todos os copos do escorredor. Arrancou a bucha da minha mão. Uma estranha quietude tomou conta dos meus pulmões. Eu parei com tudo. Até de respirar. Ela teve um acesso de tosse. Sei lá se ela engasgou com o próprio cuspe. Ela sempre cuspia enquanto falava. Começou a desfiar o rosário numa velocidade incrível. Dizia: Eu já não te falei, praga? Não te falei que a frigideira tem que ser lavada com o lado macio da bucha? Não te falei, não? Não te falei que o lado áspero arranha o teflon e estraga? Essa coisa preta aqui, ó, é o teflon. Parece que você não sabe o que é áspero e o que é macio. Vou te mostrar.

Pegou a bucha e mostrou o lado amarelo. Disse: Este é o lado macio. E esfregou maciamente no meu rosto. E este é o lado áspero. E esfregou vigorosamente no meu rosto.

Não sei se as minhas bochechas mais queimavam que ardiam. Aquele líquido gorduroso e fedido escorria pelo meu pescoço. Minha blusinha verde estava encharcada. Minha raiva era líquida e suja. Meu rosto escalavrado latejava vermelho. Minhas faces estavam sendo magoadas demais!

Meus delicados sentimentos foram escorregando dos meus olhos com a espuma do sabão. Eu me enrugava por dentro. Tentando esconder meu choro entre as pregas do meu desprezo. O único sentimento que perdurava. E ela, com aquele cheiro de bolor, tentava retirar de mim as manchas do seu próprio ódio.

Por quê? Por que aquilo tudo? Eu não sabia. Nunca soube.

Fui ao banheiro lavar o rosto. Olhei no espelho. Eu parecia o teflon. Me sentia estragada!

Em tudo. Mas em tudo mesmo eu me sentia inadequada. Eu começava a achar que minha vida era opcional. Como poderia sair de cena de um jeito macio? Viver, até então, era muito áspero para mim.

Ops! Agora preciso mergulhar nesta pia. E salvar esta louça toda dessa imundície acumulada. Gosto de cantar enquanto ensaboo, enxaguo e coloco no escorredor. Pra espantar memórias sujas.

... Lava “louça” todo dia, que agonia. Na quebrada da soleira, que chovia. Até sonhar de madrugada, uma moça sem mancada. Uma mulher não pode vacilar...

Mírian Cerqueira Leite

Mileite
Enviado por Mileite em 08/10/2016
Código do texto: T5785049
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