LAMBE-LAMBE

- Oh! Neidinha eu trouxe o almoço para a gente só sair daqui quando tudo estiver embalado.

- Não precisava fazer almoço não mulher. A gente comia um sanduiche...

- Eu não fiz não. Comprei no self service que abriu na casa que foi de seu Fabrício, aquele velho chato da esquina lá da rua.

- E ele não mora mais lá não?

- Nada menina. Depois que dona Maria morreu, ele se desgostou de tudo, vendeu a casa e dizem que foi morar num asilo lá pros lados de Olinda.

- Ele devia era casar de novo...

- E quem diacho ia aguentar um cabra velho chato daquele jeito? Só a finada mesmo e isso porque pela quantidade de tempo que passaram casados ela devia ser tão chata quanto ele... (risos)

- Mulher tu não fala da defunta que ela vem puxar tuas pernas, visse?

- Oh! Neidinha, tia Clotilde vai levar aquela fotografia velha lá da sala?

- Foi a primeira coisa que ela disse, que só saia dessa casa para um canto onde tivesse parede para botar a foto dos parentes.

- Oxe! Um troço velho, desbotado, já faltando os pedaços pelos cantos e que ninguém mais sabe quem são. Bando de povo feio... Desconjuro...

- Eu sei o nome de todos eles.

- Eu não acredito nisso não, Neidinha. Poupe-me.

- Pois vamos lá. Eu digo, você anota e depois pergunta a tia Clotilde se não está certo.

- Quem é esse padre?

- É padre Carmelo que foi o pároco que casou Voinha, batizou e casou os filhos dela e todos os netos.

- E o que é que ele está fazendo na foto?

- Padre Carmelo era mais inconveniente do que peido em elevador, menina. Vivia socado nas casas dos paroquianos, se metendo em tudo e comendo do bom e do melhor. Quando ele ouvia uma galinha cantando depois de botar ovo, mandava aquele menino seboso, filho do sacristão, pedir um ovo para a casa paroquial.

- E ele estava nesse dia na casa de Voinha?

- Quando ele ouviu falar que tinha vindo um cabra do Recife com uma máquina fotográfica, foi para lá ver a novidade e só descansou quando foi chamado para ser fotografado também.

- E quem foi que inventou essa história de fotografia?

- Olhe, tia Clotilde me contou que foi quando tio Noé mudou para o Recife para estudar no Ginásio Pernambucano. Mas ele era ruim de estudo como diacho. Gostava mesmo era de ir para a zona, mas para isso tinha que ter dinheiro para pagar os programas.

- É. Naquele tempo o cabra tinha que pagar, não era como hoje que as meninas dão de graça e ainda ajudam na vaquinha para pagar o motel. Isso é que é tempo bom de se viver... (risos)

- Pois bem. Na Rua da Palma tinha uma loja Mesbla, bem grande, que vendia de tudo e tio Noé foi trabalhar lá de balconista e numa das vezes que veio por aqui, lá no bilhar de Tota, ele disse que era o melhor vendedor da Mesbla, que ele vendia até lancha.

Aí seu Chiquinho da bolandeira que estava cheio de dinheiro por que tinha vendido uma carrada grande de caroço de algodão para a SANBRA, disse que queria comprar um barco para poder pescar no açude da Fazenda Cipó.

Marcaram o encontro na Estação Central e os dois foram a pé para a Mesbla Náutica, que ficava no Cais de Santa Rita.

Tio Noé teve medo de se perder naquele mundão de ruazinhas no Bairro de São José, aí dizendo que queria mostrar a beleza da cidade e que ele conhecia tudo, levou seu Chiquinho pela Praça Joaquim Nabuco, mostrou a Ponte de Ferro, o Cine São Luiz, do outro lado do rio e quando entraram na Avenida Guararapes mostrou o prédio dos Correios, o edifício Almare, o Bar Savoy e, quando chegaram à Pracinha do Diário, seu Chiquinho ficou encantado com os lambe-lambe que ficavam pela rua oferecendo os serviços a todo mundo que passava.

Sentou-se no banquinho e mandou que fizessem o retrato dele.

Dias depois, quando recebeu o envelope com a fotografia dele vestido com um terno azul celeste e gravata preta saiu mostrando a todo mundo.

- Oxente, seu Chiquinho só andava vestido com roupa de linho branco.

- Sim, mas nas fotografias de lambe-lambe, todo homem está de terno azul celeste e as mulheres de vestido estampado, com talho v e manga de coco.

Aí Voinho que não gostava de ficar por baixo, mandou tio Noé contratar um fotógrafo para vir na casa dele e fotografar a família toda e os amigos.

Nesse dia teve até buchada.

Foram feitas seis fotografias, mas com a cheia de sessenta e cinco, só sobrou essa porque, as outras cinco, o rio levou.

Agora anote aí. Os da frente, sentados, da esquerda para a direita. Depois a gente anota os que estão de pé.

Seu Neco da padaria. Pode reparar que ele está calçado com os tamancos de madeira.

- Não menina, isso é sapato.

- Sapato nada, era daqueles tamancos que tinham a frente fechada com couro trançado. Repare direito que dá para ver.

- Essa da flor no cabelo é dona Maroca?

- É. É a própria. Aquela mulher chata que fazia queixa da gente, que inventava coisas que nem tínhamos feito. Comadre de Voinha que veio passar um domingo de ramos e nunca mais foi embora.

Arranchou-se de um jeito que só saiu no caixão, muitos anos depois.

- Essa de cabelo solto é Voinha? Como está diferente! De cabelo solto. Eu só me lembro dela com o cabelo preso no coque atrás da cabeça...

- Voinho de terno e calçado com a alpercata de couro cru que ele não tirava dos pés nem para tomar banho... (risos)

- E esse junto de Voinho?

- É seu Manoel Pereira, prefeito na época da foto.

Ele era muito amigo de Voinho e decretou três dias de luto no município quando Voinho morreu. Eu gostava dele.

- Gostava dele ou das balinhas que ele sempre tinha nos bolsos do paletó para distribuir com as centenas de afilhados?

- Dos dois né? Mas pensando bem acho que gostava mais das balinhas mesmo. (risos)

- Eu tinha medo dele. Ele era muito grandão e falava bem grosso, parecia trovão...

- Esse da batina nem precisa dizer que é o padre Carmelo.

- Mesmo que estivesse sem batina, essa cara de bolachão não deixa a mínima dúvida. Era única. (risos)

- Agora os de pé. Esse de farda é o Cabo Vitor.

- Eu não cheguei a conhecer ele. Só sei que ele foi transferido para o Rio de Janeiro e que era afilhado de Voinho.

- Afilhado. Pois sim!

Vê como se parece com tio Noé.

Eu acho que era o salto fora de Voinho, que “mexeu secas e mecas” para arranjar a transferência dele para o Rio, para fazer o curso de oficial em Agulhas Negras.

- Menina tu não diz uma coisa dessa.

- Eu digo sim. Não tenho nabos ensacados... (risos)

Junto dele é tio Noé. Vê se não é igualzinho. A cara de um é o cu do outro...

Esse outro é tio Sebastião, que foi o marido de tia Clotilde.

Dona Esmeralda, a professora que gostava de usar palmatória e de quebrar réguas de madeira nas costelas dos alunos.

Tia Norma com Quinzinho no braço e Chico vaqueiro, que era afilhado de Voinha e que tinha vindo do sítio para matar o bode de fazer a buchada.

- Vocês já terminaram de embalar as coisas? Já está na hora de almoçar e eu estou com muita fome e ainda tem uma série de coisas para providenciar para a mudança...

- Ainda falta um bocado tia Clotilde, mas não precisa sair não, venha almoçar com a gente.

Ceça exagerada trouxe comida que dá para cinco, parece que morreu de fome na outra encarnação...

- Isso é mal de família minha filha, sua avó era assim mesmo.

ADVERTÊNCIA.

Este texto foi produzido sem o cuidado com os cânones gramaticais, em linguagem coloquial, tal como se fala em Pernambuco.

Essa historinha é dedicada ao meu amigo José Ricardo Brito de Araújo, (Nordestino com mais de quatrocentos anos de tradição, nascido no Ceará, criado em Pernambuco e que vive no coração de todos aqueles que têm a ventura de conhecê-lo).

A inspiração surgiu ao ver a fotografia da Loja Mesbla da Rua da Palma, da série Recife de Antigamente, que foi publicada no face por José Ricardo com o comentário para mim, de que se tratava de fotografia feita por lambe-lambe e, esse detalhe fez com que a historinha ficasse coçando dentro da minha cabeça.